Labruna, o maior símbolo do River
Descobri Ángel Amadeo Labruna em 1999, lendo aos dez anos edição especial da Placar sobre os cem maiores craques do século XX. Ele foi escolhido o 25º, à frente, por exemplo, de Gerd Müller, Van Basten, Leônidas, Friedenreich, Falcão, Tostão, Jairzinho, Careca… dentre os argentinos, estava atrás só de Maradona, Di Stéfano e Passarella. Cada perfil tinha um título, normalmente o apelido, o feito principal ou uma característica do jogador. O do de Labruna, falecido há exatos 30 anos, era simplesmente “Monumental de Núñez”, como se fosse o River Plate em pessoa. É compreensível.
Labruna é nada menos que o homem mais vezes campeão pelo time, somando-se taças como jogador e técnico – chegou a ter estes dois recordes também de forma separada. E é o maior artilheiro do Millo, com 293 gols. Aliás, também o maior goleador do futebol argentino e do Superclásico, vazando 16 vezes o Boca. O aniversário de Labruna foi alçado nada menos a “dia internacional do torcedor do River”. Ele dizia que “o River não é a metade mais um. É o país menos alguns…”. Além das ligações com o clube, ele também é o mais velho a jogar (incluindo em Copa do Mundo) e marcar pela Argentina.
Foram 20 anos como profissional em Núñez, com 515 jogos, e 15 na seleção; até então, outros recordes também (Amadeo Carrizo passou 21 anos e Reinaldo Merlo chegou aos 526 jogos; na seleção, Maradona, Ortega e Zanetti chegaram aos 17 anos). O amor pelo River começou cedo, a ponto de nos inícios praticar basquete e ginástica pela Banda Roja (“exceto nadar, aí aprendi até pingue-pongue”, afirmou), do qual era o sócio 2.045 já com 8 anos de idade. A loja de relógios de seu pai, sócio 580, ficava a só duas quadras do estádio que o clube tinha na Recoleta, antes da mudança para a zona de Núñez em 1938.
O pai, Angelo, italiano de Avellino, queria que o filho continuasse nos negócios. Labruna afirmou que teria seguido no basquete se tivesse conseguido um emprego. “Menos mal que não me conseguiram”, disse com humor. Os primeiros chutes se deram em um time de rua, o Barrio Parque. O talento de Labruna fez com que o próprio presidente millonario Antonio Vespucio Liberti (nome oficial do Monumental) criasse uma sexta categoria juvenil. Ficaria cinco anos na base. E arrumaria até a esposa lá, aos 16 anos conhecendo Anita Labruna em um baile na sede social. Não se separaram mais.
Tinha estilo (popularizou a matada de bola curvando a costa para trás), chutava bem com as duas pernas, era astuto para tocar de primeira, inteligente para armar jogo e se desmarcar, e muito raçudo: “o mais importante são as condições técnicas, o talento, a picardía (…). Mas se além de tudo isso tem garra, então se aproxima do ideal. Essa palavra é a que mais eu gosto de aplicar ao futebol: garra”, disse. E, é claro, era um goleador. Foi duas vezes artilheiro do campeonato. O colega Walter Gómez afirmou que “quando Labruna entrava na área para definir, eu virava para gritar o gol”.
A garra era sem excessos: “era uma rivalidade que, felizmente, começava e acabava dentro de campo, só existindo, gloriosamente, naqueles 90 minutos”, afirmou à própria Placar em 1978 sobre seus jogos contra o Brasil. “Naquele tempo, os jogos eram mais vividos e difíceis. Estádios menores, campos piores – o jogador sentia, realmente, a presença (…) da torcida contrária. Não se tinha essa facilidade de viajar apenas duas horas de avião, ficar em ótimas concentrações. Antes, a gente viajava vários dias de vapor ou por estradas – e isso ia fomentando, dentro da gente, o ambiente do jogo”.
Debutou em 1939. Naquele mesmo ano, já marcou pela primeira vez em um Superclásico, em vitória por 2-1 em que o River usou reservas porque os titulares se solidarizaram com José Manuel Moreno, suspenso pela diretoria por mal rendimento contra o Independiente (lembre aqui). Começou ali sua folclórica relação contra o rival: “o Boca é um time preparado para ganhar, mas não para dar espetáculo. (…) Eu quero atacar com 5 ou 6 homens, ganhar os jogos por 5-4. O Boca, ao contrário, se satisfaz com o 1-0”. E com o próprio Moreno, estrelaria a linha de frente dos esquadrões que o River montou nos anos 40: La Máquina. “Juan Carlos Muñoz-Moreno-Adolfo Pedernera-Labruna-Félix Loustau” virou o quinteto mais célebre do país. “Sale el sol, sale la luna, centro de Muñoz, gol de Labruna” era um canto popular.
Se firmou em 1941, ano do primeiro título, com direito à maior goleada sobre o Boca: 5-1 com gol dele. No ano seguinte, viria o bi, com volta olímpica na Bombonera após assistência dele a Pedernera. As novas taças viriam em 1945, 1947, 1952, 1953, 1955 (o título veio outra vez no campo rival, mas desta vez sem volta olímpica, a pedido do próprio Labruna), 1956 e 1957. Estes três últimos garantiram o primeiro tri seguido do River, que igualava uma marca exclusiva do Racing. El Feo (“O Feio”, em alusão aos dentes tortos), mesmo já perto dos 40 anos, foi titular em todas as conquistas: só em 1947, quando teve hepatite, jogou menos de 20 das 30 rodadas, atuando 18.
Os 9 títulos fizeram dele o profissional mais vezes campeão argentino. Só foi superado por Leonardo Astrada, que tem dez, todos também pelo River. O detalhe é que 9 títulos de Astrada vieram na era de dois campeões por ano, com os torneios curtos, de turno único – já os de Labruna eram longos torneios de turno e returno únicos para cada ano. O River foi a base da seleção naqueles tempos dourados da Albiceleste; Angelito integrou a fantástica geração ocultada pela II Guerra. Só ele e Néstor Rossi (também do River), dos campeões pela Argentina nos anos 40, jogaram uma Copa, em 1958.
Com quase 40 anos, Labruna foi para a vaga original de outro colega do River, Roberto Zárate, lesionado. Fora de forma, foi incapaz de ajudar os hermanos a se classificarem aos mata-matas. Sua trajetória na seleção acabou na Suécia mesmo, após 37 jogos e 17 gols – o último, em 1957, nos 2-1 sobre o Brasil dentro do Maracanã na estreia de Pelé. Ganhou as Copas América de 1946 e 1955, nesta destacando-se aos 37 anos contra o Uruguai: fez dois gols, foi substituído a onze minutos do fim, voltou a campo e marcou mais outro em um 6-1. Após o vexame na Copa do Mundo, em 1959 veio a notícia desagradável de que o clube prescindiria de seus serviços.
O Millo teve a decência de organizar pela primeira vez um jogo-despedida, o primeiro dos quatro que já realizou, com direito aos velhos companheiros da Máquina em campo – incluindo Pedernera, com quem estava brigado. Labruna jogou até 1961, passando pelo Rampla Jrs uruguaio e o Rangers de Talca chileno. Terminada a carreira, ele, que havia recusado vantajosas propostas do Eldorado Colombiano (para onde foram muitos craques daquele River dos anos 40, como Di Stéfano e Pedernera) e da Itália, tentou administrar de hotel em Mar del Plata e pizzaria a loja de carros usados e nenhum negócio vingou.
Também viciado em apostas em corridas de cavalo (nos meses de inverno, arranjava coletes para os colegas usarem por baixo do uniforme. “Eram iguais aos que usavam os jóqueis… quem imaginam que os trazia ao clube?”, gargalhava), só conseguiu manter-se economicamente voltando ao futebol, desta vez treinando. Começou já em 1961, perto da antiga casa, no Platense, da cidade de Vicente López, vizinha ao bairro de Núñez. Chegou até a jogar improvisado duas vezes na 2ª divisão pelo Calamar. Os primeiros sucessos viriam em 1967, próximo à antiga casa: trabalhou na segundona no Defensores de Belgrano, também de Núñez, e ainda no Platense.
O Defe foi campeão, mas sem acesso: precisava ainda passar por repescagens contra os piores da elite, o que não conseguiu. Já no Tense, treinou a melhor campanha inicial do Metropolitano 1967 e só não chegou à final porque sofreu uma das viradas mais sensacionais de todos os esportes, contra o futuro campeão Estudiantes (clique aqui para mais detalhes). Dos vizinhos, Labruna voltou à antiga casa: treinou pela primeira vez o River em 1968. Não teve êxito – chegou a perder o título de 1969 para o nanico Chacarita. Mas o pior foi perder um filho: também chamado Ángel Labruna, ele era um meia promissor que o pai lançara no River, mas morreu de leucemia naquele ano. Don Ángel saiu em 1970.
Relançou a carreira de técnico no Rosario Central, com sucesso histórico: comandou o primeiro título de um clube de interior argentino, na taça nacional de 1971, saborosa também pelo gosto de eliminar o rival Newell’s na semifinal. Mas nunca se desligou do velho clube: enfrentando-o naquele ano, se irritou com o jovem Norberto Alonso, que achava muito parado. E mesmo treinando o oponente, gritou-lhe “neném, corra que essa camiseta eu usei por 20 anos, neném”. Posteriormente, adotaria Alonso a ponto da Sra. Labruna, após a morte do marido, presentear o jogador com o anel usado por Don Ángel.
Também irritou-se com o jovem Ubaldo Fillol em 1973: o goleiro, ainda no Racing, clube da vez treinado por Labruna, estava inseguro sobre ir ao Millo. El Feo passou ainda pelo Talleres de Córdoba em 1974 (4º colocado no octagonal final que decidiu o Nacional, projetando La T nacionalmente) até enfim retornar outra vez a Núñez, que nunca saíra dele: suas cláusulas nos outros times previam sua saída imediata se o River lhe chamasse de volta. E sempre perguntava os resultados do clube após as partidas das outras equipes que dirigia. O que se passava com o River? Vivia seu pior jejum.
O time não era campeão simplesmente desde 1957, quando Angelito ainda jogava. “Volto para ser campeão”, anunciou. Mesmo não sendo especialista tático, conseguiu em dose dupla: a Banda Roja venceu tanto o Metropolitano quanto o Nacional de 1975, dando largada para um fim de década brilhante, que naturalmente manteve Labruna no cargo por um bom tempo. Em 1979, voltou a vencer tanto o Metropolitano como o Nacional. Foi campeão ainda dos Metropolitanos de 1977 e 1980, somando seis títulos argentinos como técnico do River. Vivia àquela altura a três quadras do Monumental e ainda assim se atrasava aos treinos: “porque o povo me pára na rua para me felicitar”, justificava. Nessa etapa, chegou a treinar seu outro filho, Omar Labruna.
No River, só foi superado como técnico por Ramón Díaz (que teria Omar Labruna de assistente), que conseguiu cinco argentinos e ainda a Libertadores 1996 e Supercopa 1997. O que faltou a Don Ángel foi justo a Libertadores. Chegou no máximo a uma final, perdida em 1976 para o Cruzeiro. A pressão pelo torneio aumentou após o Boca conseguir, justamente nos dois anos seguintes, seus primeiros títulos nele. A eliminação na dura primeira fase em 1981 (só o líder avançava) provocou sua saída; por um mês, torcedores simplesmente boicotaram em protesto os jogos do clube, deixando o Monumental com menos de mil espectadores. A diretoria optou por chamar Di Stéfano. Na época, um magoado Labruna chegou a declarar-se arrependido por um dia ter ido treinar o clube dos seus amores. Chegou a estar mais exaltado: “quando me fui do River, cheguei a crer que se acabava o mundo. Até quis me dar um tiro”.
O Talleres, onde fizera sucesso em 1974 (não para Angelito: “No Talleres, fracassei. (…) Quero ser ganhador. E em Córdoba, não consegui”, declarou), o trouxe de volta. E Labruna seguia pensando no River e ajudando-o: o time de Di Stéfano só avançou de fase no Nacional 1981, para adiante ser campeão, porque La T tirou um ponto do concorrente riverplatense, o surpreendente Loma Negra. Foi simplesmente o primeiro título do River em quarenta anos sem envolver Labruna. O clube também não contou com Alonso, convertido em fiel escudeiro de El Feo (que recusara a vinda de Rivellino por preferir o pupilo) a ponto de peitar o mito Di Stéfano: “ou ele ou eu”. Alonso foi repassado ao Vélez.
Já em 1983, Labruna vinha treinando o Argentinos Jrs, de expressão nanica apesar de revelar Maradona. Dali a um ano, contudo, a equipe do bairro da Paternal conseguiria o que nem com Dieguito (que saíra em 1981) alcançara: títulos na elite, seus primeiros. A mudança não afastou o ódio dos torcedores do Boca; após uma derrota de 2-1 na Bombonera, vociferou que “agora esses caras não vão comer fruta durante todo um ano para me atirarem na próxima vez”. A campanha foi agridoce: até as semifinais do nacional, eliminado no fim pelo Independiente, gol de Carlos Morete, projetado por Labruna naquele River de 1975: “justo você me manda à merda” foi o cumprimento pós-jogo ao ex-pupilo.
El Feo já não estaria presente à frente da boa equipe que vinha formando e que saltaria para vencer até a Libertadores, em 1985. Após uma operação de vesícula, o treinador foi caminhar pelos jardins da clínica junto de Fillol, que comandara no Racing, naquele grande River dos anos 70 e, naquela ocasião, no Argentinos Jrs. Labruna havia recebido alta, mas um coágulo entupiu uma artéria e provocou o infarto que a nove dias do 65º aniversário lhe matou nos braços do goleiro. Como não poderia deixar de ser, foi velado no Monumental de Núñez. Hoje, jaz ao lado do filho no Cemitério da Chacarita. Ao eleger em edição especial de 2010 os cem maiores ídolos do River Plate, a El Gráfico colocou na capa Amadeo Carrizo, Ariel Ortega, ele, Norberto Alonso, Enzo Francescoli e Bernabé Ferreyra. A revista tratou de colocar a imagem de Angelito na frente das dos outros cinco.
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