Futebol & Boxe na Argentina
Curte MMA? Antes, o espaço era do boxe. Ontem, se completou 90 anos da luta que popularizou o “nobre esporte” na Argentina. Popular que é o futebol no país, natural que alguns dos mais célebres pugilistas hermanos tenham ligações com alguns clubes.
Tão histórica foi a luta que ela é considerada a primeira das “grandes coberturas” eleitas pela principal revista argentina de futebol, a El Gráfico, na comemoração de seus 90 anos (veja aqui). Lançada em 1919, em 1923 ela esteve em Nova York cobrindo a noite em que Luis Ángel Firpo, diante de Franklin Roosevelt, desafiou o campeão dos pesos pesados, Jack Dempsey. Naquele 14 de setembro de 1923, Dempsey derrubou Firpo (primeiro latino-americano a chegar perto do título) sete vezes só no primeiro assalto e enfim o nocauteou no segundo. Mas o que entrou para a história foi o momento em que, ainda no primeiro, o argentino conseguiu derrubar o campeão para fora do ringue.
Segundo os relatos argentinos, o árbitro teria demorado a iniciar a contagem, favorecendo o lutador local, que teria ficado mais de 10 segundos recuperando-se. Os fãs argentinos se sentiram roubados, mas um cavalheiro Firpo (quem mais apareceu na capa da El Gráfico nos anos 20: 23 vezes) não protestou e os dois oponentes se tornaram amigos, a ponto de Dempsey ter vindo em 1960 à Argentina para o velório do rival, hoje um “vizinho” de Evita e outras personalidades argentinas no Cemitério da Recoleta. Aquela luta ajudou a popularizar o boxe no país, onde até então era marginalizado.
Tanto que cinco anos depois já viriam duas medalhas olímpicas de ouro, com Víctor Avendaño (meio-pesado) e Arturo Rodríguez Jurado (pesado), este também jogador da seleção de rúgbi. Dali até os Jogos de 1948, sempre houve um argentino medalha de ouro: Carmelo Robledo e Alberto Lovell em 1932, Oscar Casanovas em 1936 e Rafael Iglesias e Pascual Pérez em 1948. Na época, em 1931, Alejandro Galán adotou o codinome Jim Lopes quando morou no Brasil. Após deixar o boxe, se tornou preparador físico e técnico no país vizinho (campeão no Palmeiras, Portuguesa e São Paulo), mas chegou a treinar a Argentina, em 1962 e na Copa América 1967. Foram 7 jogos, 5 vitórias e só 1 derrota, para o Uruguai, mas ela custou-lhe a taça. Nada carismático, não durou.
Pascual Pérez, do peso mosca, também foi o primeiro dos 35 argentinos campeões mundiais, em 1954: foi recebido no aeroporto de Ezeiza pelo próprio presidente Perón, que, aliás, conheceu Evita em evento no Luna Park. Considerado o “Palácio dos Esportes” da Argentina – já sediou, por exemplo, a Copa do Mundo de Basquete e a Copa Davis de Tênis -, é voltado principalmente ao boxe. Está na Avenida Corrientes, entre o Obelisco (situado no cruzamento dela com a célebre 9 de Julio), e outro local turístico, Puerto Madero. Também casa de shows, é o Madison Square Garden portenho.
Dos 35 campeões, o mais célebre e popular foi Carlos Monzón, espécie de Mike Tyson argentino (o próprio Tyson, aliás, apareceu ao menos três vezes nas quatrocentas em que o boxe foi capa da El Gráfico) pelas glórias e históricos policiais, com acusações de homicídio. Costumava usar as cores rubronegras do Colón, seu clube do coração, a exemplo de um campeão mais recente, Marcos Chino Maidana. Monzón, Pérez, Víctor Galíndez e Nicolino Locche são os quatro hermanos presentes no Hall da Fama Internacional do Boxe. O mais recente campeão é Sergio Maravilla Martínez, detentor do cinturão dos médios do Conselho Mundial de Boxe desde setembro de 2012. Galíndez, aliás, virou mais do que apelido de um sósia seu, Miguel Di Lorenzo, o mais famoso massagista do futebol argentino: é o único homem campeão internacional na seleção (Copa 1986, Copas América 1991 e 1993, Copa das Confederações 1992) e no trio Boca (Libertadores e Mundial 1977), River (Libertadores e Mundial 1986) e San Lorenzo (Mercosul 2001, Sul-Americana 2002).
O tal Di Lorenzo ficou mesmo mais conhecido pelo apelido Galíndez do que pelo nome real, embora seu currículo invejável seja menos conhecido fora da Argentina do que por ter sido o homem que servira a suposta água batizada entregue pelos argentinos a Branco na Copa do Mundo de 1990. Maravilla Martínez, por sua vez, foi capa da El Gráfico do último abril. Ele é natural de Quilmes e já chegou a vestir roupão do Quilmes em pleno ginásio do rival, o Argentino de Quilmes. Também torce para o River, chegando a usar camisas do Millo antes de subir a ringues. Outro exemplo é um ex-campeão dos meio-médios da Associação Mundial de Boxe, Diego La Joya Cháves: ex-jogador das divisões de base do Vélez, torce para o clube, é patrocinado por ele e já chegou a lutar no ginásio poliesportivo velezano.
De outros ex-campeões mundiais, Jorge Locomotora Castro e Raúl Balbi usavam camisas do Boca; Jorge Hiena Barrios, do Tigre; Juan Carlos Reveco, do Huracán Las Heras (de Mendoza); Horacio Accavallo, o primeiro argentino campeão mundial depois de Pérez, usava roupões do Racing. Héctor Velazco e Marcelo Domínguez fizeram suas preparações rumo ao cinturão em instalações, respectivamente, do Nueva Chicago e do Huracán, e usaram as camisas dos clubes logo após a consagração como agradecimento. E vêm destes dois clubes os casos mais emblemáticos da simbiose boxe-futebol. O detalhe é que, como Firpo, não chegaram a ser campeões mundiais.
Dos anos 30, Justo Suárez foi o 15º de 25 irmãos (!) e pelo boxe ascendeu da pobreza em plena depressão pós-1929, tornando-se ídolo popular. Mas uma tuberculose o matou aos 29 anos. Em uma de suas lutas na Argentina, foi aplaudido não só pelo presidente Uriburu, mas também pelos futuros reis britânicos Eduardo VIII e Jorge VI. Natural do bairro cujo nome deve-se a antigos matadouros locais, ficou conhecido como Torito de Mataderos. O apelido virou conto de Julio Cortázar e foi assumido também pelo Nueva Chicago, clube do bairro e cujo estádio está situado na “Rua Justo Suárez”. Como Firpo nos anos 20, Suárez foi quem mais apareceu na capa da El Gráfico nos anos 30: dez vezes.
Se Suárez virou conto, Oscar Ringo Bonavena apareceu em filme americano de 2010: foi baseado nele o personagem Armando Bruza de O Rancho do Amor. O filme, com os oscarizados Helen Mirren (A Rainha) e Joe Pesci (Os Bons Companheiros), conta a história real do primeiro bordel legalizado dos EUA. Bonavena chegou lá sob o patrocínio do mafioso dono do negócio, mas iniciou um caso com a esposa dele e, descoberto, acabaria morto por um capanga do marido traído. Era fanático pelo Huracán: “antes de ser eu campeão do mundo, prefiro que seja o Huracán”, declarou ele.
Velado no Luna Park, há uma estátua sua em frente à sede do social do clube, no bairro de Parque Patricios, no dito parque que dá nome ao bairro. Um grito popular da torcida é “Somos del Barrio de la Quema/Somos del Barrio de Ringo Bonavena”. La Quema faz alusão à queima de lixo antigamente praticada pelos fornos crematórios do bairro; daí o apelido quemeros dos torcedores do Huracán. Em luta que a El Gráfico também considera cobertura histórica (veja aqui), Bonavena desafiou rumo ao título ninguém menos que Muhammad Ali (quem vencesse desafiaria Joe Frazier pelo cinturão) e até o derrubou. Era grande amigo do principal ídolo do rival San Lorenzo, Héctor Veira. Mesmo perdendo, foi ovacionado pelas torcidas de River e Racing ao aparecer publicamente em jogo deles pouco depois.
Falando em Huracán, um dos pioneiros do boxe argentino, ainda no século XIX, foi ninguém menos que o próprio Jorge Newbery. Multiesportista, colecionou títulos nos ringues na virada do século. Mas foi ainda mais reconhecido como o pai da aviação do país. Na época, causou sensação ao ir de Buenos Aires a Bagé (RS) cruzando o Uruguai. Tal viagem trinacional foi a bordo do balão El Huracán. O clube já existia, mas por conta disso adotou como emblema um balão – em espanhol, Globo, um dos apelidos do time. Newbery seria mecenas da equipe e hoje batiza o aeroporto doméstico da capital federal.
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