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Há cem anos, o primeiro Boca-River na elite

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Cándido García e Pedro Calomino, presentes no clássico de cem anos atrás. García até marcou o primeiro gol

O maior clássico do futebol argentino e um dos maiores do mundo não nasceu grande. Há cem anos, River e Boca ainda eram pequenos clubes de bairro que enfim se enfrentavam pela primeira vez em um campeonato. Por sinal, clubes de um mesmo bairro: La Boca, nome que, adotado pelos auriazuis, faz jus à boca (ou foz) do rio Riachuelo no Rio da Prata – em inglês, River Plate. Tempos em que os rivais ainda não faziam El Superclásico: Até ao menos os anos 30, o dérbi era apenas El Clásico Boquense, mesmo com a mudança do River para a zona norte (La Boca fica ao sul) nos anos 20 – veja aqui.

Tanto eram pequenos (o River estava longe de ser Millonario, alcunha que só receberia nos anos 30) que o local do jogo não foi no campo nem de um, nem de outro. O Boca tinha o mando, mas estava desalojado de seu estádio à época – La Bombonera só foi inaugurada em 1940 – desde o ano anterior. A solução foi jogar na outra margem do Riachuelo, em Avellaneda, cidade separada de La Boca pelo rio. A partida ocorreu no estádio do Racing.

Até 1913, eles haviam se enfrentado duas vezes, em amistosos, em 1908 e em 1912. Em 1912, o River empatou em casa por 1-1. Em 1908, o Boca venceu por 2-1 na sua, mas por outro lado viu o rival chegar à elite. Alguns riverplatenses campeões até haviam passado rapidamente pelos xeneizes: Arturo Chiappe e Francisco Priano – Chiappe e outro vira-casaca, Alberto Penney, jogaram pelo River há cem anos, enquanto Donato Abbatángelo e Francisco Taggino, do Boca, iriam depois ao rival; Taggino, como contamos aqui, seria até o primeiro na seleção vindo da rivalidade. Naquele 1908, a dupla ainda estava na 2ª divisão, mas em chaves diferentes. Poderiam ter se encontrado justo na final, mas na semi o Boca foi eliminado pelo Racing, que perderia a decisão para a Banda Roja.

La Banda Roja, por sinal, era outro sinal de mudança: pouco após chegar à elite, o River mudou de camisa. Em vez daquela branca com faixa diagonal vermelha, passou a usar uma com listras verticais, nas cores vermelha e branca em faixas grossas separadas por faixas pretas finas. Atualmente, é um tradicional uniforme reserva, mas foi a camisa principal do clube até 1932, quando a faixa diagonal foi readotada. Naqueles primórdios, quem mais usou faixa diagonal foi justamente o Boca, embora em 1913 ele já tivesse adotado a característica barra horizontal entre o tórax e o abdômen.

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Cena da partida

O encontro dos rivais na elite em 1913 só ocorreu por manobras extracampo. Em 1912, a Associação Argentina de Futebol foi reconhecida pela FIFA, o que não impediu que alguns clubes saíssem para formar seu próprio órgão, a Federação Argentina de Futebol. Os dissidentes eram liderados pelo Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, que não aceitava cobrar ingressos de seus sócios para os jogos onde era mandante. A FAF recrutou para a sua elite até times da 2ª divisão da AAF (dentre eles, o Independiente), cuja elite, por sua vez, ficou reduzida a seis clubes.

A AAF reagiu: inchou sua elite de 1913 para quinze, com alguns outros clubes de suas divisões inferiores, dentre os quais, o Boca, desde então na primeira divisão argentina – em vez de ascender, ele “foi ascendido”, como dizem os rivais. Só que o River, que havia ficado em último na elite em 1912, foi permanecido na primeira divisão em vez de ser rebaixado, o que só ocorreria quase um século depois (em 2011). Duas manchas bem incompatíveis com a grandeza que a dupla viria a angariar até hoje…

Em cenário ainda a respirar ares anglo-saxões (não por acaso a dupla, como o próprio anfitrião Racing, tem nome inglês), a pontualidade não foi bem britânica: “a iniciação do jogo estava indicada para as 2:30 pm, mas se deu começo às 3:10 por ausência do referee a atuar nessa partida”, publicou-se no dia seguinte na seção Sports do diário La Nación. Quem se improvisou na condução do cotejo foi um irlandês, Paddy MacCarthy, professor de educação física na Escola Nacional do Comércio em La Boca e entusiasta do futebol.

Já o La Mañana disse que “o anúncio deste match despertou no público muita expectativa por contar ambos os quadros com elementos de certa valia em suas filas, por suas posições quase iguais no campeonato e, mais que tudo, pelo conhecido antagonismo que media entre ambos os clubes (…). O público acudiu em grande quantidade na cancha do Racing, cedida a tal efeito pela comissão deste clube e muito antes de que começasse o encontro suas tribunas já apresentavam um aspecto animado”.

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Uma formação do Boca em 1913

O Boca teria dominado o início, mas foi quem levou o primeiro gol. Cándido García, de cabeça, abriu o placar aos 23 minutos. Os auriazuis buscaram o empate, mas sem sucesso. No início do segundo tempo, lances quase que seguidos só pioraram-lhe a situação: Antonio Ameal Pereyra ampliou, com um “tiro curto”, aos 2 minutos (ele foi outro vira-casaca em campo: em 1920, esteve no Boca). Aos 3, o boquense Juan Garibaldi machucou-se e teve que sair. Como não eram permitidas substituições na época, sua equipe teve que seguir com dez homens em campo.

Mas, aos 25 minutos, os xeneizes conseguiram descontar, com Marcos Mayer. Aos 29, ambos ficaram com dez jogadores: Ameal Pereyra, “algo contuso, (…) desistiu de seguir jogando”. Segundo o La Mañana, não faltaram “cenas de pugilato” entre os rivais, mostra de como o dérbi já fervia. De acordo com o La Prensa, o momento mais tenso foi quando o goleiro boquense Virtù Bidone, ao interceptar um cruzamento de Fraga Patrao, “caiu no solo, onde foi atropelado por alguns jogadores do River Plate. Com tal motivo, vários homens dos dois quadros se tomaram a golpes de punho, triste espetáculo este que terminou com a intervenção do juiz e dos linesmen que atuavam na partida”.

Mesmo sem mais a vantagem numérica com ainda 15 minutos restantes, o River segurou. E só em 1918 conheceria nova derrota no clássico. Embora o Boca tenha encerrado a era amadora, em 1931, mais vezes campeão argentino (seis títulos contra um do Millo), ela teve seis vitórias do grande rival contra três boquenses na elite, pouco lembrando a rivalidade na era profissional – onde a Banda Roja tem mais títulos nacionais e a Azul y Oro, mais vitórias no clássico.

BOCA: Juan Virtù Bidone, Juan Garibaldi, Horacio Lamelas; Miguel Valentini, Marcelino Vergara, Miguel Elena; Pedro Calomino, Ángel Romano, Marcos Mayer, Francisco Taggino e Donato Abbatángelo.

RIVER: Carlos Isola, Arturo Chiappe, Pero Calneggia; Heriberto Simmons, Cándido García, Atilio Peruzzi; Luis Galeano, Antonio Ameal Pereyra, Alberto Penney, Fernando Roldán e Roberto Fraga Patrao.

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Uma formação do River em 1913

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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