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35 anos da Copa 1978: Argentina 6-0 Peru

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Um dos mais polêmicos episódios das Copas faz 35 anos hoje. Ainda não se cabe dizer se os perdedores entregaram propositalmente a classificação à Argentina. Mas podemos desfazer algumas falácias bem perceptíveis e, quem sabe, promover uma visão mais fria dos ocorridos.

Há quem diga que a Argentina já havia sido favorecida de antemão para o jogo, com sua partida começando à noite e não simultaneamente à de seus concorrentes à classificação, Brasil e Polônia, que se pegaram na tarde daquele 21 de junho de 1978. Poucos se recordam de que não foi um episódio isolado, nem antes, nem depois.

A última rodada do grupo A, na Copa de 1974, teve Austrália-Chile antes do duelo de Alemanhas Ocidental e Oriental. No grupo A de 1966, a anfitriã Inglaterra jogou contra a França horas depois de México-Uruguai. Em 1962, a última rodada teve jogos com um dia de diferença, o mesmo ocorrendo vinte anos depois, na Copa da Espanha. Foi só depois da Copa de 1982, após o ainda mais polêmico Alemanha-Áustria, que a FIFA decidiu que jogos de últimas rodadas seriam simultâneos.

Há quem ponha sob “óbvia suspeita” o goleiro do Peru, como David Yallop em seu Como Eles Roubaram o Jogo – Segredos dos Subterrâneos da FIFA: “era um fato indiscutível que o goleiro do Peru, Quiroga, havia nascido na Argentina. Desejaria ele ser relembrado como o homem que impedira seu país natal de chegar à final?”, insinua o inglês. Quem tiver a paciência de assistir os maiores vídeos de todos os jogos do Peru disponíveis no Youtube verá que Quiroga, a rigor, falhou, na verdade, duas vezes.

Só que uma foi a favor do Brasil, ao aceitar o segundo gol de Dirceu, em chute de fora da área do curitibano. A outra, contra a Escócia: ela abrira o placar após ele rebater um chute adversário nos pés de Joe Jordan, em jogo que, ainda em 1-1, incendiou os colegas a virarem (seria Peru 3-1) após pegar um pênalti de Don Masson. Há 35 anos, contudo, ele pouco pôde fazer na meia dúzia de gols que sofreu.

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Kempes cara a cara com Quiroga tocando na saída do goleiro: 1-0

A própria Placar, ao escrever em sua edição pós-Copa que “o Peru exagerou”, tratou de inocentar o goleiro: “A Quiroga não se pôde culpar pelo bombardeio que seu gol sofreu”. O próprio Yallop reproduz que o goleiro teria até dito que “o fato é que eu me sinto roubado. Se tantos dólares foram pagos, eu não fui incluído. Acho que tenho direito à minha parte na bolada”. Yallop se equivoca ainda mais ao afirmar que “o técnico peruano colocou em campo quatro reservas inexperientes”.

Mas era praticamente o mesmo time-base que a Blanquirroja vinha usando na Copa, sem apenas o defensor Rubén Díaz (segundo a Placar, contundido; não enfrentara também a Polônia) e o atacante Guillermo La Rosa. E o técnico Marcos Calderón realizou só uma alteração no decorrer do jogo, com a entrada de Raúl Gorriti, que já jogava pelo país desde 1976. Apenas um em campo há 35 anos estreou em 1978 pelo Peru: o defensor Roberto Rojas, na vaga que seria de Díaz, que contra a Polônia ficara com o mais experiente José Navarro – que, porém, fora o culpado pela derrota (ler adiante).

Yallop também insinua que a arbitragem teria favorecido a Argentina contra a Hungria ao expulsar “inicialmente” dois húngaros em lances seguidos – o que só ocorreu nos dois últimos minutos da estreia, e merecidamente; contra a França, pelo árbitro só assinalar pênalti aos argentinos ao consultar o bandeirinha se a mão na bola de Trésor ocorrera dentro ou fora da área (onde está a ilegalidade?); que a Itália só conseguiu vencer a Albiceleste porque o árbitro da partida teria fama de destemido a pressões…

O escritor, ao procurar convencer que o árbitro contra a Polônia também teria beneficiado a Argentina, usa como exemplo o lateral Tarantini evitando gol com a mão. Só que o próprio Yallop, contraditoriamente, assume em seguida que o pênalti foi assinalado (como deveria ser). Por fim, ignora a catimba brasileira, simbolizada por Chicão, e realça apenas as da Argentina no clássico sul-americano na Copa. Yallop tem uma narrativa cativante, mas estes fragmentos não resistem aos vídeos completos das partidas e a simples bom senso.

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Tarantini cabeceia: 2-0

Há ainda quem fale que o Peru não usou sua camisa principal justamente para não mancha-la com a “entrega combinada”. Só que, como contamos em outros especiais da série, transmissões em preto-e-branco ainda eram comuns, o que já levara a Polônia a também usar camisa vermelha ao invés da branca contra a anfitriã. Uma confusão para os telespectadores entre o forte branco nas duas camisas, apesar das chamativas listras celestes horizontais da Argentina e diagonal vermelha do Peru, seria provável.

Podemos usar novamente a Placar ao lembrar de sua nota sobre Cubillas, quando ela o elegeu entre os cem craques do século em 1999. “Cubillas jamais admitiu as pressões exercidas por militares argentinos no vestiário que outros jogadores, como Oblitas e Chumpitaz, relataram anos depois”. Se a pressão realmente existiu, os próprios Oblitas e Chumpitaz não ficaram nada acuados em campo, pelo contrário: estiveram entre os melhores do Peru na partida. Algo que muito motiva as suspeitas é o fato de a defesa peruana ter se saído apática no dia.

Quem assistir ao jogo verá que, por mais que os peruanos cercassem os argentinos, pouco metiam o pé para desarmá-los e, quando conseguiam recuperar a posse de bola na defesa, ficavam tocando-a entre si, mesmo com oponentes na cola, ou tentavam até driblá-los, ao invés de afastá-la para longe. Mas isso ou os buracos deixados ocorreram também em outros jogos: pelo menos aos 18:20, 21:40, 40:40, 51:10, 53:47, 55:33, 57:02 e 1:17:45 minutos no vídeo do jogo contra a Holanda; aos 9:41, 5:15, 9:43, 13:20, 17:05, 19:20, 27:23, 29:15 e 51:20, contra o Brasil; e aos 26:26, 39:20, 47:40, 53:30, 1:05:00, 1:11:28 e 1:33:29, contra a Polônia, os outros três mais fortes times que pegou.

Quem tiver nossa paciência em ver os vídeos peruanos no torneio verá que sua zaga não era quase nada chegada a um chutão – contamos menos de dez: menos de dois por jogo. Nem exercia, naquela época de futebol mais lento, a marcação frenética das equipes de ponta de hoje em dia. Ter liderado o grupo da Holanda na primeira fase não necessariamente quer dizer que dera espetáculo (e mesmo que tivesse dado: as bem lembradas seleções da Dinamarca na Copa 1986, Camarões na Copa 1990 e Bulgária na Copa 1994 foram derrotados por 4 gols de diferença nos ditos torneios, assim como Ucrânia em 2006 e Argentina em 2010, ambas eliminadas só nas quartas-de-final); os sonolentos vídeos podem demonstrar. Para completar, o Peru estava abatido: já não tinha chances de classificação.

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Kempes fuzila Quiroga à queima-roupa: 3-0

Na segunda fase, a Blanquirroja começou perdendo de 0-3 para o Brasil, muito criticado pela própria imprensa por não ter feito ainda mais. A Polônia, apenas explorando as trapalhadas da defesa peruana, poderia ter feito placar ainda mais elástico, aos 1:13:00, 1:16:30, 1:19:40 e 1:24:20. Venceu só por 1-0, pela citada falha de Navarro: perdeu bola boba para Lato, que cruzou na medida para Szarmach, aproveitando buraco enorme da desastrosa zaga peruana, marcar de cabeça (1:11:28). Tamanha a apatia do time motivara o próprio Quiroga a empurra-los ao ataque, fugindo da grande área para aparecer como líbero (1:34:00 e 1:35:37). Aliás, a Polônia ganharia de 5-1 do Peru na Copa seguinte.

Na edição anterior aos 6-0, a Placar já diagnosticava o Peru com uma “defensiva instável” e que “o time parece ter esgotado toda sua capacidade na fase classificatória (…). Agora, atacado por um complexo de inferioridade – segundo uns – e exaurido fisicamente – segundo outros, tratou de retomar sua própria dimensão”. Na edição pós-Copa, a revista mais culpou a preferência de Cláudio Coutinho em manter vantagens em vez de amplia-las do que a “entregada” peruana pela não-classificação brasileira à final:

“Na vitória por 3-0 contra o Peru, Coutinho declarava-se muito feliz, embora soubéssemos de antemão que a Argentina poderia vencer o mesmo adversário por escore maior – como de fato venceu. E mais sabíamos: teríamos que enfrentar a Polônia, um time respeitável e motivado pela existência de chances de disputar o primeiro ou o terceiro lugar, o que já não acontecia com o desmoralizado Peru. E Coutinho ficou novamente feliz quando vencemos a Polônia por 3-1. O diabo é que, se a Polônia foi um adversário digno e difícil no início do jogo, entregou-se nos 20 minutos finais da partida, quando sentiu a impossibilidade de virar o marcador. E não marcamos mais porque o Coutinho deu-se por satisfeito.”

Ainda sobre o Brasil, a revista duvidou do rótulo de “campeão moral”, sustentando que os não-campeões “que ficaram na história se caracterizaram por possuírem ataques arrasadores, o que nem de longe é o caso da Seleção Brasileira que disputou esta Copa” e que a canarinho era só “uma boa equipe, digna apenas de disputar o terceiro lugar”. “Perdemos a Copa do Mundo, afinal, por absoluta incompetência ofensiva” e “precisávamos de muitos, muitos gols. (Mas) Ficamos nos 3-1” também foi dito.

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Luque, de peixinho: 4-0

“Um dos lados parou – o nosso. Fácil imaginar por quê: se a vantagem mínima tinha acomodado o time, no primeiro tempo, com muito mais razão uma diferença de dois gols (…) Se por um lado a Polônia buscava o gol, continuava proporcionando as mesmas facilidades. O Brasil, porém, não aproveitava”, escreveu a revista sobre Brasil-Polônia. “Se o Brasil chegar ao título jogando só isso, não vou dizer que o nível do futebol baixou e sim que esse é o nível do campeão”, teria dito o técnico polonês Jacek Gmoch.

Antes de finalmente passarmos ao jogo Argentina-Peru em si, cabe lembrar que a Copa reservara outros placares como o que a Albiceleste precisava (4 gols de diferença, ao menos) sobre adversários que, ao contrário do Peru, realizavam jogos onde ainda não estavam eliminados: o México de Hugo Sánchez perdeu pelos mesmos 0-6 para a Alemanha Ocidental. E a Áustria, que venceria a própria Alemanha, levou de 1-5 da Holanda. E que, no início daquele ano, a Argentina venceu o Peru por 3-1 – em Lima.

Se o Peru foi subornado ou pressionado, não demonstrou nada disso no início. Ainda que inofensivo, Cueto (aos 6:00 minutos do vídeo contra a Argentina) logo arriscou um chute de fora da área: isso dera certo contra Escócia, no gol de empate dele. Oblitas, que supostamente admitira a pressão, reclamou de pênalti (10:42). O outro, Chumpitaz, neutralizou duas vezes (11:03 e 13:29) lançamentos de Kempes a Luque. Aos 15:00, um contra-ataque peruano é lançado para Muñante, que acerta a trave.

Aos 16:46, pode-se ver uma reclamação peruana de falta no ataque. Aos 17:26, vê-se Chumpitaz impedindo Bertoni de chegar na bola. Aos 19:42, Oblitas, lançado por Cueto, levou perigo ao gol de Fillol, após jogada que levou quatro peruanos ao ataque. Um minuto depois, Oblitas novamente tentou, em troca de passes com Cubillas. Aos 21:40, a defesa rechaça um ataque argentino e, aos 22:30, Oblitas tenta jogada individual no ataque. Depois disso, a Argentina, enfim, começa a chegar aos gols.

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Houseman completando fácil para o gol vazio após belo passe de Ortiz: 5-0

Aos 24:45, Kempes triangula açucaradamente com Gallego e só se dá ao trabalho de driblar o único defensor que lhe aparece e tocar na saída de Quiroga para colocar 1-0. Pouco depois, aos 26:30, Oblitas, servido por um Velásquez que lhe cruzara a bola após driblar Passarella, tentou superar dois marcadores e terminou reclamando de falta. Em seguida, Bertoni, aos 27:00, roubou a bola do fraco setor defensivo peruano e sofreu falta. Na sequência da cobrança, pode-se ver que Kempes tentou repetir a jogada, mas desta vez atrapalhou-se e a zaga peruana neutralizou.

Os 2-0 poderiam ter vindo aos 30:47, mas a defesa peruana afastou. Aos 37:20, Oblitas cobrou um escanteio com precisão para Velásquez, mas Fillol calculou bem e bloqueou. No contra-ataque, Quiroga saiu bem antes que Luque chegasse (38:00). Ele faria ainda uma defesa em dois tempos aos 40:11, após bola mal afastada pela zaga. Aos 41:02, foi o “novato” Roberto Rojas quem afastou um dos perigosos cruzamentos de Ortiz.

Aos 46:40, Quiroga precisou jogar para escanteio tentativa de Larrosa, titular na vaga do machucado Ardiles. Na cobrança, veio o gol: uma cabeçada fulminante de Tarantini reoxigenou os argentinos ao fim do primeiro tempo, pois metade do trabalho necessário estava feito. Ainda na primeira etapa, um defensor afastou de qualquer jeito – raridade – nova bola que chegava a Luque. Já no segundo tempo, o Peru tentou diminuir, com Velásquez (52:15), em chute que passou perto do gol, após jogada de Oblitas.

Mas, a partir dos 54:50, começa o terceiro gol. Um contra-ataque peruano é abortado por impedimento de Cubillas. Na sequência, Bertoni sofre falta pela ponta-direita. Olguín cruza na área e Kempes triangula com Bertoni para receber livre e metralhar Quiroga à queima-roupa. Os argentinos ainda teriam mais de quarenta minutos para concluir o que precisavam, mas um bastou: em contra-ataque após a saída de bola peruana, a bola é roubada, passada com calma até Larrosa cruzar pela ponta-esquerda. Passarella, em disputa com adversário, cabeceou para Luque, sozinho, mergulhar de peixinho, enquanto os peruanos só pediam impedimento.

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Luque toca na saída de Quiroga: 6-0

Com o objetivo já cumprido, os argentinos tinham quase um tempo inteiro para administrar com mais tranquilidade a partida. Quiroga defendeu o que poderia ser o quinto aos 59:15, em nova tentativa de Luque. Ele ainda saiu para pegar a bola aos 1:02:30, quando Tarantini tentou acionar Luque, em quem saiu em cima para bloquear aos 1:06:00. O Peru, que já não tinha ao que lutar, ainda tentou algumas jogadas de ataque, mas, naturalmente, já sem o ímpeto da primeira etapa, aos 1:09:10, 1:11:20 e 1:12:00. Nesse tempo, Menotti recolocou Houseman em campo. El Loco logo marcou: Kempes passou a Ortiz, que ciscou pela área e cruzou rasteiro, sem dar trabalho para Houseman emendar, aos 1:13:10.

Na saída de bola, os peruanos tentaram uma tabela no ataque, mas perderam a bola e o aceso Houseman quase marca aos 1:14:40, se Quiroga não se antecipasse. A bola dividida entre eles sobrou para Luque, que chutou para cima. Quiroga, ainda que batendo roupa, também impediu outro de Tarantini, lançado por Larrosa aos 1:16:39. Um contra-ataque peruano com Cubillas e Oblitas foi puxado, mas sem dar muito trabalho a Fillol. Se até ali os gols argentinos, por maior que fosse a apatia peruana, poderiam ser creditados também à habilidade alviceleste, no sexto ocorreu uma falha mais clamorosa dos peruanos. 1:18:40. Pouco após Houseman perder outra boa chance, a defesa oponente perdeu uma bola boba, repassada a Luque, que tocou na saída de Quiroga.

E poderiam ter vindo muitos mais, como aos 1:35:00, no contra-ataque de uma tentativa peruana. Como a El Gráfico escreveu, Cubillas teria declarado que “É lamentável que se tenha deformado o ocorrido naquela partida. A realidade é que chegamos com muitos problemas: Chumpitaz (que se despedia ali da seleção) febrio, Díaz e Navarro fora por lesão, Muñante e eu golpeados… nós estivemos mal, mas naquela noite a Argentina ganhava de qualquer um. Jogou um futebol excepcional”.

FICHA DA PARTIDA – Argentina: Ubaldo Fillol, Jorge Olguín, Luis Galván, Daniel Passarella e Alberto Tarantini, Omar Larrosa, Américo Gallego (Miguel Oviedo 41/2º) e Mario Kempes, Oscar Ortiz, Leopoldo Luque e Daniel Bertoni (René Houseman 20/2º). T: César Menotti. Peru: Ramón Quiroga, Jaime Duarte, Rodolfo Manzo, Héctor Chumpitaz e Roberto Rojas, Alfredo Quesada, César Cueto, José Velásquez (Raúl Gorriti 7/2º) e Teófilo Cubillas, Juan Muñante e Juan Carlos Oblitas. T: Marcos Calderón. Árbitro: Robert Wurtz (FRA). Gols: Kempes (21/1º), Tarantini (43/1º), Kempes (4/2º), Luque (5/2º), Houseman (22/2º) e Luque (27/2º)

http://www.youtube.com/watch?v=hrjyEjFp5Hg

http://www.youtube.com/watch?v=MhJUhjf-kBM

http://www.youtube.com/watch?v=IRzu3NQgwnw

http://www.youtube.com/watch?v=mA60i2YapwY

http://www.youtube.com/watch?v=LdORWEbnCqs

http://www.youtube.com/watch?v=xH9HZWO7Ez4

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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