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90 anos da primeira Olimpíada da seleção

Originalmente publicado no aniversário de 85 anos, em 13-06-2013

O sucesso olímpico da Albiceleste nos anos 2000, com a primeira medalha de ouro no futebol se misturando em Atenas com a primeira do basquete e com o bicampeonato na China iniciando a Era Messi no futebol, não se repetiu nessa década: os hermanos sequer se classificaram para os Jogos de Londres e caíram ainda na primeira fase nos de 2016, sob desorganização tamanha até para os padrões da AFA. Mas vale relembrar um primeiro antecedente, a edição de Amsterdã – ainda que sob gosto não tão doce da prata, em final realizada há 90 anos.

Na época a principal competição internacional do futebol, o futebol olímpico tinha como vencedor o Uruguai, em 1924 – a primeira edição organizada pela própria FIFA, que, para 1928, repetiria a gestão pela segunda e última vez: daí a interpretação uruguaia de considerar-se tetracampeão do mundo, inclusive através das estrelas somadas ao distintivo de sua federação. Nos Jogos de Paris, os orientales se tornaram os primeiros representantes sul-americanos. Em alto estilo: a Celeste virou a Celeste Olímpica e, para saudar os espectadores, difundiram a volta olímpica.

Na revista El Gráfico em 1928: o goleiro Bosio, futuro ídolo do River nos anos 30, e o goleador Tarasconi

A forte rivalidade entre os vizinhos do Rio da Prata se acendeu ainda mais. Por conta disso, o primeiro gol oficial em que um tiro de escanteio entrou diretamente nas redes, anotado por Cesáreo Onzari em um clássico platino naquele mesmo 1924 (já após as Olimpíadas), virou o “gol olímpico”. Como se não bastasse, o Boca empreendeu uma exitosa excursão à Europa em 1925… e o Nacional, também. E a seleção argentina não deixou por menos: a Copa América de 1927 servia também de eliminatórias para os Jogos de 1928, fornecendo vaga ao campeão e ao vice. Pois os hermanos trataram de vence-la, precisamente na primeira vez em que conseguiram ganha-la longe de casa – o Peru foi a sede.

A campanha incluiu um 3-2 no clássico platino, embora o Uruguai acabasse se classificando junto, com o vice-campeonato. Restava repetir isto sob a vitrine mundial. Para as Olimpíadas de Amsterdã, os campeões da América usaram a mesma equipe-base vencedora continental, casos dos goleiros Bosio e Díaz, do zagueiro Bidoglio, dos meias Evaristo, Monti e Zumelzú e dos atacantes Carricaberry, Ferreira, Luna, Ochoa e Orsi. O grande desfalque foi Seoane: maior artilheiro do Independiente no amadorismo, El Negro era ciumento demais para deixar sozinha a esposa e abriu mão da viagem…

Os convocados para as Olimpíadas, na revista Caras & Caretas

Clube de Bidoglio, o Boca foi quem mais cedeu enxertos de última hora: o zagueiro Médici e, sobretudo, a dupla ofensiva que compensou a ausência de Seoane, o centroavante Cherro e o ponta Tarasconi. Cherro, por muito tempo, foi mesmo o maior artilheiro da história do Boca (Tarasconi é o quarto), apesar da barriguinha, só sendo superado em 2010 (por Martín Palermo). Amostra de seu nível é que Guillermo Stábile, o artilheiro da Copa de 1930, era originalmente seu reserva e só passou à titularidade por conta de uma crise nervosa do Cabecita de Oro. Cherro marcou quatro gols no torneio, mas foi o artilheiro daquelas Olimpíadas seria mesmo Tarasconi, com onze gols – uma marca anual só superada em 1998, por Batistuta, e 2012, por Messi.

Tarasconi também foi o máximo goleador da seleção até 1942 e fora dele o gol da vitória por 2-1 no Uruguai em 1924 em que ocorrera o “gol olímpico”. “Fazer como Tarasca – do meio campo, um gol”, verso da música “Patadura”, de Carlos Gardel, o imortalizou nos tangos; até hoje, nenhum sul-americano conseguiu tantos gols em uma só Olimpíada. Apesar do sucesso, ele seria, como Seoane, um dos ausentes na Copa de 1930. Teria sido crucificado por ter passado em branco nas finais, mas o principal fator foi a lesão inoportuna que acelerou seu fim de carreira, pois seria sim reconhecido pela El Gráfico quando ela elegeu os cem maiores ídolos da seleção, em 2011: “Tarasca fazia gols de qualquer canto. Nos Jogos Olímpicos de Amsterdã 1928, anotou onze tentos em apenas três jogos. Assim, foi o principal motivo pelo que a Argentina pôde obter a medalha de prata”, enfatizou-se no seu perfil.

Aperitivo: Tarasconi no amistoso prévio contra Portugal, primeira seleção que a Argentina enfrentou em solo europeu

No fim das contas, a lista para Amsterdã foi esta, notável pela ausência de um River Plate ainda dono de um único título argentino e pela presença de times extintos, casos dos dois Sportivos:

Goleiros: Ángel Bosio (Talleres de Remedios de Escalada) e Octavio Díaz (Rosario Central).

Defensores: Ludovico Bidoglio (Boca), Juan Evaristo (Sportivo Palermo), Alfredo Helman (Estudiantes de Santiago del Estero), Ángel Médici (Boca), Rodolfo Orlandini (Sportivo Buenos Aires), Fernando Paternoster (Racing), Luis Weihmüller (Sportivo Palermo) e Adolfo Zumelzú (Sportivo Palermo).

Meias: Saúl Calandra (Estudiantes), Segundo Luna (Mitre de Santiago del Estero), Luis Monti (San Lorenzo), Pedro Ochoa (Racing) e Natalio Perinetti (Racing).

Atacantes: Pedro Carricaberry (San Lorenzo), Roberto Cherro (Boca), Manuel Ferreira (Estudiantes), Enrique Gainzarain (Ferro Carril Oeste), Raimundo Orsi (Independiente), Feliciano Perducca (Racing) e Domingo Tarasconi (Boca).

Time da estreia: Médici, Bidoglio, Bosio, Calandra, Paternoster, Monti e massagista Sola; Carricaberry, Tarasconi, Ferreira, Cherro e Orsi. Em negrito, os nomes diferentes da primeira imagem

Outro desses olímpicos entre os ausentes mais célebres da Copa 1930 foi outro atacante, o ponta-esquerda Orsi, único jogador do Independiente entre os escolhidos. Na época o segundo maior goleador da história do clube, acabou sendo o primeiro dele a se transferir para a Europa, contratado pela Juventus. Passou a jogar pela Itália e seria campeão da Copa de 1934, neste país, inclusive marcando gol na final. Acabou tapando o ponta-esquerda titular da Copa América de 1927, Luna, que ainda em 1928 demonstraria seu valor ao liderar a memorável conquista da empobrecida Santiago del Estero no então valorizado campeonato argentino de seleções provinciais – primeiro título nacional de alguma equipe do interior profundo.

Quanto a Orsi, vale algumas curiosidades: após defender a Azzurra, conseguiu voltar a jogar pela Albiceleste, algo oficialmente só alcançado por Alejandro Scopelli (o primeiro argentino globalizado do futebol, justamente) e penduraria as chuteiras no Flamengo. Curiosamente, o time olímpico tinha ainda outro futuro campeão de 1934 pela Itália, o volante Monti, então capitão argentino. Monti ficaria famoso exatamente como único a jogar finais de Copa por países diferentes – “o coração de Monti”, aliás, também acabou cantado por Gardel em “Patadura”.

Monti e Orsi também estamparam a capa da revista El Gráfico em 1928. À direita, eles pela Itália campeã mundial em 1934 (entre eles, Renato Cesarini, outro a jogar pelas duas seleções)

A preparação em solo europeu incluiu três amistosos, embora só o primeiro seja lembrado: 0-0 em Lisboa em 1º de abril contra Portugal, primeiro adversário que a Albiceleste enfrentou na Europa e igualmente classificado às Olimpíadas. Os outros dois jogos foram duelos tidos como não-oficiais; em 4 de abril, já na capital espanhola, a Argentina venceu por 2-0 um combinado de Atlético com o extinto Racing de Madrid, mas veio a ser surrada por 4-1 pelo Barcelona ao visitar a Catalunha, em 22 de abril (haveria troco, já após as Olimpíadas: em agosto, os blaugranas retribuíram a visita e realizaram amistosos em Buenos Aires, perdendo duas partidas e empatando outra, em duelos que renderam a estreia de um brasão no uniforme argentino).

Os Jogos só começaram no fim de maio e muitas peças recorrentes naqueles amistosos já não teriam lugar, notadamente o volante Zumelzú, presente nos três, mas ausente em toda a campanha olímpica em prol de Monti; e o ponta Perinetti: recordista até hoje de jogos pelo seu Racing, esteve nos dois primeiros jogos, e desperdiçou um pênalti no primeiro. Carricaberry tomaria a posição mesmo participando da goleada para o Barça. Ironicamente, algo parecido se passou para a vaga de goleiro: Díaz foi utilizado contra os portugueses e no segundo tempo contra os catalães, sofrendo só um gol da goleada. Mas o titular seria mesmo Bosio, que só se ausentaria nas semifinais, mantendo-se dono da posição até a Copa 1930.

Cenas contra o Egito. À direita, o goleiro Díaz pegando um pênalti

Assim, o time-base da medalha de prata começou com Bosio e uma dupla de zaga presente em todas as partidas, Bidoglio e Paternoster; o lateral-direito Médici e o capitão Monti também atuaram em todos os jogos – enquanto que a outra lateral foi mais rotativa, com Calandra na estreia, Orlandini no segundo jogo (ambos também testados nos amistosos) e enfim Evaristo do terceiro em diante. O quinteto ofensivo foi idêntico da estreia até o fim da semifinal: Carricaberry, Tarasconi, Ferreira, Cherro e Orsi. Em negrito, os que iriam  à Copa 1930.

O futebol foi mesmo um torneio à parte em Amsterdã: além de ser organizado pela FIFA e não pelo COI, as disputas se deram dois meses antes das demais modalidades. Em 29 de maio, os hermanos logo abriram 6-0 nos Estados Unidos, em jogo que terminou 11-2, a maior goleada da edição. Tarasconi deixou já ali quatro gols e Cherro, três. Com dois gols cada, Orsi e Ferreira, que abrira o placar aproveitando com oportunismo rebote do goleiro a um primeiro arremate, completaram o marcador.

Homens da primeira final, em colorização do @nostalgiafutbo1: técnico Lago Millán, Médici, Bidoglio, Bosio, Monti, Paternoster, Juan Evaristo e massagista Sola; Carricaberry, Tarasconi, Ferreira, Gainzarain e Orsi. A ordem dos nomes é a mesma da imagem que abre a matéria, foto correspondente à segunda final, exceto por Perducca no lugar de Gainzarain

Tarasca manteve a dose no compromisso seguinte, nas quartas-de-final: quatro gols (incluindo um logo no primeiro minuto) nos 6-3 na Bélgica, uma partida que no décimo minuto já contava 3-0 para os sul-americanos. Os belgas, em grande reação, conseguiram empatar, mas não resistiram nos últimos 15 minutos, quando sofreram outros três gols. Orsi e Ferreira marcaram novamente, um cada. O Egito, que eliminara Turquia e Portugal, foi a próxima vítima: os faraós levaram de 6-0, com direito a pênalti perdido. Cherro abriu o placar, concluindo aos 10 minutos uma jogada tabelada com Orsi… mas também se lesionaria, desfalcando seriamente a Argentina para a decisão.

Aos 32, um cabeceio de Ferreira anotou o segundo gol, aproveitando bola cruzada por Tarasconi, que então iniciou seu próprio show: fez o terceiro aos 37, o quarto aos 9 do segundo tempo e o quinto aos 16. A nove minutos do fim, Ferreira fez um segundo gol para fechar o placar. Em paralelo, a cada vitória argentina, o Uruguai respondia com triunfos nos dias seguintes. Os rivais enfim se (re)encontrariam em 10 de junho. Uma final sul-americana na Europa demonstrava qual continente se apoderava do outrora football. Na verdade, acabariam sendo duas finais…

Os capitães Nasazzi e Monti com o trio de arbitragem (ao lado de Monti está o belga Jean Langenus, que também seria o juiz da final da Copa de 1930). À direita, Nasazzi contra Gainzarain, observados por Andrade

Em 10 de junho, o placar foi aberto aos 23 minutos por Petrone, futuro artilheiro da liga italiana em 1932. Substituto pontual de Cherro, Gainzarain cabeceou firme um cruzamento de Carricaberry, sem que o goleiro segurasse. Oportunista, El Nolo Ferreira, cérebro de Los Profesores (dentre os quais, outro campeão mundial com a Itália em 1934, Enrique Guaita, e o mencionado Scopelli), recordado ataque do Estudiantes, aproveitando a sobra para igualar com o gol vazio. Ferreira, inclusive, tomaria a braçadeira de Monti para ser o capitão da seleção em 1930. Gainzarain, por sua vez, acabou de fora do próprio jogo extra.

É que não havia pênaltis como critério de desempate, e sim uma nova partida. Foi este o jogo realizada há 90 anos, naquele 13 de junho de 1928 – véspera do parto de um tal Che Guevara, vale a curiosidade. Perducca, com cartaz de já ter feito gol no lendário Ricardo Zamora (em um Argentina x Espanyol em 1926), substituiu Gainzarain. Já os uruguaios adentraram com Andrés Mazali, José Nasazzi, Pedro Arispe, José Andrade, Juan Píriz, Álvaro Gestido, Juan Arremón, Héctor Scarone, René Borjas, Pedro Cea e Roberto Figueroa – em negrito, os que também venceriam em 1930.

O famoso lance de “é tua, Héctor” corresponde à foto do canto superior direito

A princípio, a nova final reeditou o equilíbrio da primeira: Figueroa, aos 17, colocou os charruas outra vez à frente, com a igualdade vindo em menos de dez minutos, por meio do raçudo capitão Monti. Foi aos 28 minutos do segundo tempo que confirmou-se a supremacia uruguaia, dando números finais ao jogo: Scarone, maior artilheiro da Celeste no século XX, ouviu a ordem “é tua, Héctor” do colega Borjas e, na entrada da área, fuzilou para longe do alcance de Bosio (veja na foto superior direita acima).

O bi olímpico foi o grande amparo para que os vizinhos recebessem a primeira Copa do Mundo, dali a dois anos, e onde a Argentina também ficaria no vice. Nas Olimpíadas, ela só estaria de volta em 1960, em Roma. Nas finais, só em 1996, em Atlanta. Mas o troco demoraria ainda oitenta anos, com o bi nos Jogos de Atenas 2004 e Pequim 2008. Já os uruguaios, incrivelmente, demorariam até 2012 para voltar às Olimpíadas.

Em pé: Tarasconi, o uruguaio Píriz, Ferreira, o uruguaio Andrade e, ao fundo, Orsi. Arispe e o goleiro Mazali são os caídos

Fluente em cinco idiomas, o belga Jean Langenus foi um dos bandeirinhas das finais e dali a dois anos seria o juiz da final da Copa de 1930. Escaldado por Amsterdã, exigira para Montevidéu seguro e passagem de volta no primeiro navio disponível – o nível de rivalidade de Argentina e Uruguai na época seria contextualizado também por uma anedota atribuída a Orsi. Para evitar atritos, as delegações, no regresso à casa, foram em vagões separados por terem usado o mesmo trem de Amsterdã a Paris. Na capital francesa, ambas foram recebidas por Carlos Gardel (que, segundo certas versões, seria uruguaio e não francês de nascimento), que tentou pôr panos quentes.

O “rei do tango” procurou confraterniza-las em cabaré, inclusive organizando que as equipes se sentassem de forma intercalada. Gardel, sabendo dos dotes artísticos de Orsi no violino, inclusive chamou-o a tocar junto. Não deu certo: os aplausos pós-show logo foram sucedidos por guerras de migalhas, “depois pães, e logo voavam garrafas de vinho”. O próprio Orsi, para defender-se, quebrou o violino na cabeça de algum adversário…

Clique aqui para ver uma “parte 2”: como se deu a Copa 1930, também decidida entre Argentina e Uruguai

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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