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All Boys: cem anos de história

Hoje, dia 15 de março, é centenário de um clube especial: o Club Atlético All Boys. Para muitos, não passa de um mero “timeco” local. Para outros, trata-se de um nanico até mesmo para o contexto do futebol de bairro. Porém, o Albo é o clube da Floresta. Neste local, a centenária instituição fundada por Cincotta é gigante, ainda que seja apenas no coração dos seus bravos torcedores.

O Dia D da fundação do Albo

Vicente Cincotta recebeu todos em sua casa, naquele dia. Não que fossem desordeiros ou vagabundos. Tanto é assim que o encontro ocorreu quase no início da noite. Isto em razão de que, embora alguns deles fossem quase donos de seus próprios negócios, o fato é que mesmo assim trabalhavam. E muito. Naqueles tempos, o trabalho era duro, árduo, exigente e vampirava dos músculos do corpo à alma das pessoas.

O palco de trabalho era assim: tinha o homem da própria terra, o imigrante europeu e o migrante local, que saía das províncias distantes e que era o candidato principal a miserável e corticeiro da Capital Federal. Todos eles eram ligados pela perspectiva de uma vida melhor, pela quase escravização de sua força de trabalho e pela disposição única de se divertir: desnecessário é dizer que sua diversão principal era o futebol.

Cincotta chamou todos porque já jogavam o esporte nos terrenos baldios da Floresta. Cada vez era um time diferente, com peles diferentes, posses e compromissos. Certo é que todos eram cachaceiros. Mas incomodava ao “garoto” o fato de que alguns deles se excediam.

A alma efervescente do novo clube

Formar um clube era formalizar um grupo. Fechá-lo. Da proposta em si ao nome do futuro clube estava implícito o caráter do Albo. E sua alma, contraditória para o tempo, se chocaria com a realidade e rapidamente tomaria dela uma lição. Dolorosa, mas fundamental para a constituição de sua essência institucional.

Das pessoas presentes, na casa de Cincotta, ao menos um deles, Gerónimo Siffredi, discordava dos rumos daquela prosa. Discordância exposta, mas, contra ela, vale dizer que Cincotta não era propriamente um moço do mal. Longe disso. Ele era conhecido pela sua gentileza, educação e disposição de ajudar. Contudo, vivia numa época em que a nobreza tinha um outro lado: a preocupação, compreensível até, mas excessiva, com a mistura entre as classes sociais. Também vale ressaltar que Siffredi não era contrário à fundação do clube. Fechava com a proposta de que sua criação facilitaria a vida do grupo, já que por todos os cantos se fundavam instituições futebolísticas e cada vez mais ficava difícil encontrar equipes que tivessem tempo e disposição para pelejar com os meninos da Floresta.

Além disso, jogar futebol era uma paixão social. Só que também era uma loucura. Num mundo efervescente como aquele, jogar futebol era uma das piores opções. Porém, se fosse para praticá-lo, que fosse de maneira organizada e sob o distintivo e as cores de um clube. Siffredi fechava com essas ideias e com Cincotta, mas descordava do caráter restritivo que a maioria dos membros queria tatuar na essência do clube que nascia.

Só que essa disputa interna continuaria por um tempo e seria pouco a pouco diluída antes pela realidade do que pelas ideias de um deles sobre o outro. E este processo educaria também a Cincotta e aos demais fundadores acerca dos limites ideológicos de sua ideias iniciais.

O Caráter comunitário do Albo

O terreno cedido era pequeno para a prática do futebol e era só parte de uma área muito maior. Não que houvesse má vontade dos donos, longe disso; à bem da verdade, boa vontade era o que curiosamente não faltava das pessoas com aqueles garotos malucos que poderiam ser quaisquer coisas, menos jogadores de futebol. Só que, naqueles idos, quem tinha terra tinha também muitas ideias do que fazer com elas. O mundo argentino expandia-se como poucos e as oportunidades de ascensão ou de crescimento das fortunas também. Então, apenas parte do que se tinha doava-se para os “vagabundos”, já a parte maior era comprometida com o ideal de fortalecimento das riquezas.

Então, quando se reuniam para jogar a pelota, os meninos iam lá e mediam o terreno de novo. E todas as vezes que o faziam, tratavam de aumentá-lo um tantinho mais. Bobos não eram. Então, foram logo tratando de construir também um vestiário. Todo ele de madeira da época, abundante e cortada na própria região. Para conseguir fazê-lo, foi necessário a proposta de um baile. Pensavam que ninguém estaria presente. Só que a comunidade local foi em peso.

Foi a primeira demonstração histórica de apego do povo local ao time. Ao longo dos tempos, essas manifestações se repetiriam. A principal delas ocorreria no final da década de 90. O Albo estava quebrado e prestes a fechar suas portas. O rejuvenescimento de sua gestão, como a doação de dinheiro, suor e trabalho das pessoas simples do bairro o salvou. A iniciativa foi tão poderosa que até os dias de hoje repercute no crescimento do clube.

Da exaustiva reunião, ficou decretado que Gerónimo Siffredi seria o presidente. Depois disso, bastava ajeitar as camisas e entrar no campeonato. O que fazer? Então, couberam as esposas e mães dos garotos a tarefa árdua de confeccionar as camisetas do time. O tempo era curto, pois ou estreavam na data ou teriam de esperar vários meses para fazê-lo. Talvez, somente na temporada posterior. As mulheres trabalharam sem parar de forma que três dias depois a equipe pudesse entrar em campo.

O primeiro jogo do Albo

No dia 23 de março de 1913, apenas oito dias após a fundação, o clube da Floresta entrou em campo pela primeira vez na sua história. E a peleja seria válida pela terceira divisão, da FAF (Federación Argentina de Football), contra outro quadro do bairro, o Club Atlético Argentino de Vélez Sarsfied. Era por ali que o futuro Fortín jogava inicialmente, no mesmo bairro onde o Albo havia nascido, antes de simplificar o nome para Club Atlético Vélez Sarsfield, mudar-se para Villa Luro e, finalmente, estabelecer-se no bairro de Liniers, também naquelas redondezas do oeste de Buenos Aires.

Pareceu ao então Argentino de Vélez Sarsfield que aquilo era um pesadelo. Não que este clube, em seu terceiro ano de existência, fosse muito diferente. E talvez porque estivesse acostumado com um misto de campo e pasto, em que até alguns tocos de madeira não haviam sido arrancados a contento, todos imaginaram quem mandaria no confronto. Só que foi dominado do começo ao fim do cotejo pelo Albo.

E, talvez porque esteve chovendo naqueles dias, os meninos da Floresta se adaptaram ainda mais que os experientes adversários aos buracos cheios de água enlameadas, que se esparramavam pelo que deveria ser o campo de jogo. Mesmo assim, o conjunto do Vélez procurava um time como rival e só se deparava com um bando de garotos animados e prestigiados por um número significativo de seus familiares. O que estava acontecendo?

Se aquilo era um time, todos da Floresta sabiam. Contudo, a tarefa de tentar convencer os rivais sobre o assunto já era matéria para especialistas. Para o clube rival, o Albo era esquisito, ou, traduzindo: aquilo era mais um bando de maltrapilhos com camisas novas em caras de famintos; calçados e até alguns calções furados vestindo rostos cheios de sono, ansiedade e cabelos devidamente penteados que dariam inveja ao melhores cremes de gel de nossa atualidade.

O resultado não poderia ser outro: 1×0 para o Albo, com um gol de Ocampo, aos 35 minutos da etapa inicial. Uma vitória que foi um verdadeiro título para os meninos, motivo de orgulho para seus moradores e o abraço ainda mais fraterno da gente do lugar ao que seria historicamente o seu clube do coração.

Copa Competência de 1914

J. Cuneo, M. Vecchio, J. C. Guido Spano, H. M. López, A. Badaracco, J. Iturri, C. Badaracco, N. Linder, M. Hiller, V. Cincotta, C. Frascoli

A campanha da equipe no início de 1914 o classificou para a Copa Competência, que reunia as equipe das duas principais divisões. Vale dizer que o All Boys havia tido um excelente ano em 1913 e conseguira o acesso à Segunda Divisão. Para o confronto do primeiro jogo do clube, contra o Vélez, o Albo formou com Lemme, Zampini, Caneva, Moreno, Levalle, Rusconi, Ernesto Bonanni, Miguel Rendina, Nadal, Cincotta e Vargas Machuca. Já para a primeira partida da Copa Competência o time era compeltamente outro: J. Cuneo, M. Vecchio, J. C. Guido Spano, H. M. López, A. Badaracco, J. Iturri, C. Badaracco, N. Linder, Marius Hiller, V. Cincotta, C. Frascoli.

A profunda modificação no elenco veio de uma decisão de Cincotta, então já na presidência do clube em virtude do falecimento de Siffredi. Cincotta era conhecido na Capital Federal porque, antes de fundar o Albo, já havia atuado brevemente por alguns clubes. Entre eles, estava o Boca Juniors, no qual chegou a fazer um gol. Pois bem, o novo presidente foi a várias localidades próximas e convenceu muita gente a compor a equipe da Floresta. Entre eles, apareceu aquele que seria o primeiro grande ídolo do Albo, o alemão Marius Hiller: cracaço e goleador de mão cheia, já havia jogado pela Alemanha e defenderia também a Argentina.

A primeira partida foi contra o Atlas de La Paternal, em 19 de abril. O jogo foi parelho e cheio de gols. No final, o empate em três gols obrigou as duas equipes a voltarem a se encontrar. Alguns dias depois, em 3 de maio, na cancha do Quilmes, o Albo fez 3×0 no Atlas, com uma performance contundente e participação de gala de Cincotta, Badaraco e Hiller.

Pelos 16 avos de final, o confronto seria um dos mais temidos para qualquer um. Não foi para o Albo, que já começava a impor respeito em alguns de seus rivais mais próximos. Entre eles, estava o Atlanta, disputante da primeira divisão e com quem a equipe da Floresta disputaria grandes embates ao longo da história. Ninguém acreditava no Albo, exceto parte de seus torcedores. O cotejo foi no Parque Chacabuco, onde o Bohemio mandava suas partidas. Hiller abriu o placar para o Albo, logo aos cinco minutos de jogo. Para mostrar que não estava dormindo na cancha, o Bohemio tratou logo de empatar, dois minutos depois. A. Dolhagaray foi o nome do gol.

O volume de jogo era grande e o Albo chegou ao gol da vitória aos 28 minutos do segundo tempo. Novamente, Hiller foi o nome do gol. O resultado significou a primeira vitória sobre uma equipe da elite argentina. Representou mais que isso: uma afronta para o Bohemio; um feito para o brioso conjunto da Floresta.

Marius Hiller, o primeiro grande craque da história do Albo

Pelas oitavas de final, outro gigante apareceria no caminho do Albo: o Independiente de Avellaneda. Para complicar, o jogo seria na casa do Rojo, assim como mandava o regulamento, que rezava pela realização do primeiro encontro na cancha do clube da elite. Na trade de 10 de junho, A. Rovere, C. Guido Spano, D. Vecchio, C. Frascoli, C. Badaracco, M. López, F. Bó, V. Cincotta, Hiller, E. Badaracco e M. Linder entraram em campo para encarar o Rojo.

Aos 30 minutos de jogo, S. García colocou a pelota nas redes e fez todo mundo rir: 1×0 Independiente. Sete minutos depois, Badaracco exigiu respeito ao empatar o cotejo para o Albo. Diante do espanto do conjunto rojo, Hiller apareceu aos 11 minutos da etapa final para virar a peleja. Foi então que o Independiente se deu conta de que não jogava com um time qualquer: aos 14 e aos 24 minutos, N. Capelletti reverteu de novo a vantagem para o conjunto local. Com a vantagem estabelecida, o Independiente tratou de aumentá-la e não faltou chances para isso. Só que quando restavam poucos minutos para o fim, já se viam um toque para lá, outro para cá; uma risada aqui, outra risada acolá.

Na essência dessa atitude estava o ideal de superioridade de um ótimo time da elite contra um esforçado rival da segunda. Daí, o convite para rir. Só que Hiller não gostou disso e acertou o travessão de Carlos Muttoni, aos 38 minutos do segundo tempo. Dois minutos depois, aos 40, novamente o alemão teve a chance e não desperdiçou: guardou a pelota no arco de Muttoni e saiu para o abraço. Um assombro.

As lições foram tiradas da primeira partida, mas para os dois lados. Só que o Independiente aprendeu mais. Percebeu que jogava com um time de verdade, embora fosse pequeno. Já o Albo se achou grande demais e, na mesma medida, viu no Rojo um mero rival que poderia ser vencido. Nesta proposta, não considerou, por exemplo, que o cotejo-desempate seria novamente na cancha do conjunto vermelho de Avellandeda. O Rojo colocou J. Cánepa no meio-campo, no lugar de M. González; a troca significou mais um jogador no meio em detrimento do ataque, que ficou mais econômico de nomes. Já o All Boys fez precisamente o contrário. Entrou com o atacante Moggio, no lugar de Guido Spano, um dos melhores marcadores da equipe. O resultado disse tudo sobre o que era a experiência das duas equipes.

A tarde do dia 21 de junho só conhecia um time no ataque, enquanto o outro fazia o impossível para se defender. Os esforços do Albo foram se esvaindo no final do primeiro tempo. Aos 38, N. Capelletti guadou: 1×0 Rojo. Apesar do sofrimento, Moggio e Cincotta quase empataram ainda na primeira etapa, em dois rápidos contragolpes.

No segundo tempo, não foi diferente e somente o conjunto local é que frequentava o campo de ataque. Não que os visitantes quisessem fazer o jogo da defesa contra ataque. Até que tentavam sair e incomodar a meta de Muttoni. Só não conseguiam. Aos 21, novamente Capelletti foi o nome do gol: 2×0 Rojo. Foi então que o Albo foi caindo na real ao mesmo tempo em que via todas as suas forças saindo de seu corpo. Quatro minutos depois, aos 25, Etcheverry fez o terceiro. Aos 30 e 37 minutos, P. Garre fechou o caixão do Albo e o mandou de volta para a sua realidade da Floresta.

Só que, embora o golpe tenha sido duríssimo, o que ficou foi o orgulho por chegar tão longe na Copa. Tanto foi assim que o gol de honra, de Badaracco, aos 31, foi o que serviu para alimentar as conversas semanais, posteriores à eliminação da Copa Competência. Além disso, quando alguém ousava falar da derrota, a defesa do povo da Floresta era uma só: “perdemos para o grande campeão do Torneio, além de termos encarados a eles como se encara a qualquer um”.

O espírito do Albo estava já construído. Mazelas e felicidades marcariam sua história nos próximos cem anos, com capítulos que sempre aproximariam a sua comunidade do seu time. Passeios por todos os rincões da Argentina foram feitos pelo clube e por seus torcedores, assim como os frequente passeios pelas divisões de acesso. E embora a história do Albo fosse gigantesca, das origens até os dias atuais, essa mesma história desejou que ele fosse apenas o clube da Floresta. Um simpático povo local que faz do “nanico” clube da Floresta um gigante ilimitado em cada um dos corações de seus moradores.

Feitos do Albo

Fase do Futebol Amador

1922: Acesso à Primeira Divisão.

1926: Desfiliação e queda para a Segunda divisão

1931: Acesso à Primeira Divisão

1932: Primeiros jogadores na seleção: Aquiles Baglietto, Juan Carlos Irurieta e Atilio Patrignani, que jogaram dois amistosos contra o Uruguai

Os heróis de 1931: Arriba: Baglietto*, Ruiz, Pietanezi, Patrignani*, Vico, Figueroa. Abajo: Berlanga, Duarte, Irurieta*, Mauricio, Giribaldi. Os destacados (*) jogariam pela seleção vindos do Albo

1934: Rebaixamento da Primeira para a Segunda Divisão, por fusão da AFF com a AFA

Fase do Futebol Professional

1945: Rebaixamento da Segunda para a Terceira Divisão

1946: Campeão da Terceira Divisão e retorno para a Segunda.

1949: Rebaixamento da Segunda para a Primeira Divisão amadora, por reestruturação do futebol argentino

1950: Campeão da Primeira Divisão amadora e retorno à Segunda.

1962: Rebaixamento da Segunda para a então chamada Segunda Divisão de Acesso

1963: Acesso à Segunda Divisão, por nova reestruturação do futebol local

1965: Quarto jogador na seleção: Luis Medina, vindo da segunda divisão para jogar amistoso contra o Brasil

1972: Campeão da B Nacional e acesso à elite argentina

Os heróis de 1972: em pé: Escalada, Gutiérrez, Díaz, Montilla e Panizzo. Agachados: Belvedere, Cavallo, Mamberto, Sánchez, Romero e Fraile.

1980: Rebaixamento à B Nacional

1986: Rebaixamento à B Metro, a Terceira Divisão argentina

1993: Campeão da B Metro e acesso à B Nacional

2001: Rebaixamento para a B Metro

2008: Campeão da B Metro e acesso à B Nacional

2010: Acesso à elite argentina, ao vencer o heroicamente o Rosário Central por 3×0, no Gigante de Arroyito

2012: Quinto jogador na seleção: Oscar Ahumada, participante do segundo jogo do Superclássico das Américas. Ver aqui especial sobre ele e os outros quatro

Joza Novalis

Mestre em Teoria Literária e Lit. Comparada na USP. Formado em Educação e Letras pela USP, é jornalista por opção e divide o tempo vendo futebol em geral e estudando o esporte bretão, especialmente o da Argentina. Entende futebol como um fenômeno popular e das torcidas. Já colaborou com diversos veículos esportivos.

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