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Torcedores de um, jogaram no rival

Hugo Pérez conseguiu ser campeão por seu Racing. Mas fez mais sucesso no rival

Hoje é dia de amistoso entre Racing e Independiente, o outro clássico inserido entre os cinco grandes do futebol argentino (que contém eles, a dupla Boca e River e ainda o San Lorenzo). O dérbi da cidade de Avellaneda já opôs alguns envolvidos frente ao clube que torcia na infância, como outros clássicos pelo mundo e na própria Argentina.

O Independiente, com larga vantagem no retrospecto de taças e vitórias sobre o rival, também vai melhor quando se aproveita de torcedores dele. O supergoleador Luis Artime foi um. Foi o artilheiro do título argentino de 1967, em que o Independiente, treinado por Osvaldo Brandão, conseguiu um recorde ainda não superado de aproveitamento, 86,7% dos pontos. Artime inclusive marcou dois nos 4-0 no clássico de Avellaneda que selou a conquista. Falamos a respeito há exatamente um mês, aqui.

Carlos Morete surgiu cheio de gols no River, ajudando a quebrar em 1975 o tabu de 18 anos que o clube vivia, logo indo ao futebol espanhol. Regressou à Argentina no rival Boca, em 1981, também sendo campeão, mas sem brilho. Relançou-se no Independiente: artilheiro do campeonato de 1982, voltou à seleção depois de mais de dez anos (segundo maior hiato de alguém na Albiceleste). Mas, perguntado em 2008 sobre que time torcia, El Puma respondeu: “Racing, me levava ao campo meu avô”.

Colega de Morete, o zagueiro Enzo Trossero, capitão do último elenco rojo campeão da Libertadores e da Intercontinental, em 1984, nunca escondeu que na verdade apreciava a Academia. Porém, costumava crescer não só em jogos decisivos, mas também nos dérbis. Um último ídolo seria outro zagueiro, Gabriel Milito. Como o irmão mais velho, o atacante Diego, Gaby era racinguista quando garoto.

Artime (contra o Racing), Trossero, Morete e Gabriel Milito

Diego conseguiria jogar profissionalmente e ser ídolo no clube dos irmãos, mas Gabriel, ainda com 17 anos, debutaria para o futebol no arquirrival. Defenderia-o com tanto ardor que receberia a alcunha de El Mariscal (“O Marechal”), recebendo oportunidade na seleção aos 20, em 2000. Foi o capitão  da última vez em que os diablos foram campeões argentinos, em 2002 (falamos aqui), e, após sair no ano seguinte, voltou ao clube em 2011 para encerrar a carreira.

Há ainda o caso do meia Hugo Pérez. Ao contrário dos quatro acima, conseguiu jogar no Racing. Venceu a primeira Supercopa Libertadores (torneio extinto em 1997 entre apenas campeões da Libertadores), em 1988, último título internacional dos blanquicelestes e único troféu deles entre 1967 e 2001. Só que El Perico era reserva. Após um período no Ferro Carril Oeste, chegou ao Independiente em 1993. Em 1994, venceu como titular o campeonato argentino e também a Supercopa pelo rival, além de integrar a seleção na Copa do Mundo. Ainda é o último campeão pelas duas metades de Avellaneda.

Por outro lado, uma das mais importantes personalidades racinguistas tinha coração originalmente rojo: Juan José Pizzuti, que também passou por Boca e River, se destacou como um grande atacante (118 gols em 215 jogos pelo Racing), mas, sobretudo, como técnico. Ele comandou à beira do gramado o elenco vencedor da Libertadores de 1967 (aqui) que, no mesmo ano, conseguiu também a primeira conquista argentina na Intercontinental (aqui). Em razão dele, aquele conjunto, que obteve ainda um recorde nacional de 39 jogos seguidamente invictos, ficou lembrado como Equipo de José.

Depois da Intercontinental, o clube decaiu muito. Passou por jejum de títulos nacionais entre 1966 e 2001, período que incluiu até rebaixamento (1983). A única taça nessa época foi a uma Supercopa Libertadores, torneio que entre 1988 a 1997, quando foi extinto, reunia só campeões da Libertadores. A Academia levou a de 1988 sobre o Cruzeiro no Mineirão graças a um gol de Omar Catalán, torcedor rojo e um atacante fracassado (no Racing, só 4 gols em 25 jogos) que em um ano passou a ser taxista. Mas o lance bastou-lhe para eternizá-lo entre os grandes ídolos blanquicelestes.

Pizzuti Catalán Sessa Simón
Pizzuti ainda como jogador do Racing, Catalán, Sessa em clássico platense pelo Estudiantes e Simón

Como Avellaneda, La Plata, uma das poucas cidades no país em que os clubes locais são mais populares que os cinco grandes, é dividida em vermelho e azul. O goleiro Gastón Sessa foi um dos bem poucos a jogar tanto por Estudiantes quanto por Gimnasia y Esgrima. Oriundo da mesma escolinha dos gêmeos Barros Schelotto, com eles fora aos juvenis dos alvirrubros quando o técnico deles foi trabalhar lá. Os gêmeos, de família gimnasista, logo rumaram para o GELP, mas El Gato, embora também fosse tripero como eles, continuou no Pincha.

Houseman
Houseman como jogador do “Defe” e como torcedor do “Excursio”

No Estudiantes, debutou profissionalmente, embora não escondesse desde os juvenis que acompanhava o arquirrival após os treinos. Com Verón e Palermo, participou como reserva do título da segunda divisão de 1994-95, sempre com camisas onde não havia o distintivo pincharrata sobre o coração. “Joguei uma vez (o clássico platense), perdemos 2-0, e os do Gimnasia me aplaudiam, não sei se ironicamente ou o quê”. Já em fim de carreira, enfim passou pelo Lobo. Virou ídolo ao ajudar a retardar por anos rebaixamentos iminentes, até a queda em 2011.

Rosario é outra cidade em que os clubes locais têm mais força na população. E tem em Newell’s Old Boys x Rosario Central a rivalidade talvez mais ferrenha do país. O último a vestir as duas camisas, o goleiro Juan Carlos Delménico, o fez há quase trinta anos, em 1984. Ali, o mais famoso a jogar pela camisa que torcia contra na infância foi o zagueiro Juan Simón, titular na Copa de 1990. Um dos maiores ídolos do NOB, onde começou a carreira, confessou em 2001: “Apesar de haver jogado no Newell’s, (…) nasci hincha do Central”.

Já a capital Buenos Aires, com seus numerosos clubes, é repleta de situações parecidas. Dos times mais nanicos, o caso mais famoso é do ponta-direita René Houseman. Enraizado nos subúrbios entre os bairros de Belgrano e Núñez, surgiu no Defensores de Belgrano, sendo até campeão da 3ª divisão de 1972.

Em 1973, já no estrelato de Huracán (naquele ano, foi protagonista do único título profissional deste clube na elite), chegou à seleção, sendo campeão mundial em 1978. Mas virou persona non grata no Defe: torce pelo rival Excursionistas, onde tentara inicialmente jogar, e nele fez questão de encerrar a carreira, ainda que em uma única partida, em 1985. “Excursio é minha casa”, diz El Loco. Mais aqui.

Outro a surgir no arquirrival da equipe portenha que torce é conhecido dos brasileiros: Alejandro Mancuso, volante que passou nos anos 90 por Palmeiras, Flamengo e Santa Cruz. Debutou no Ferro Carril Oeste, nos anos 80, fase áurea do clube do bairro de Caballito. Nas folgas, porém, se metia por onde jogava o Vélez Sarsfield, às vezes com os barrabravas. Até que conseguiu uma transferência direta ao rival, apesar do FCO viver momento melhor, como explicamos aqui.

Mancuso (em pé) e Esteban González por Ferro e Vélez

Mancuso foi um dos emblemas do Vélez no fim do período pré-1993, quando o clube do bairro vizinho de Liniers, comandado por Carlos Bianchi, tornou-se uma máquina de títulos, ampliando colossalmente a tradicional vantagem que tinha no hoje desvalorizado (para os velezanos) Clásico del Oeste – que não ocorre desde 2000, em razão do rebaixamento do Ferro, que ainda não voltou à elite. Exatamente em 1993, Mancu foi para o Boca, pelo qual seria colega de Hugo Pérez na Copa do Mundo de 1994.

Mais um que começou no Ferro e passou ao rival foi o atacante Esteban González – este, de sentimentos originalmente verdolagas. Integrou o elenco campeão argentino em 1982 e 1984, títulos que fizeram o FCO ficar por nove anos à frente do vizinho. El Gallego, porém, era reserva (jogou uma vez em 1982 e três em 1984), destacando-se mais na Libertadores; é o maior goleador do clube na competição, com 7 gols: um em 1983 e o restante na de 1985, incluindo dois nos 2-0 sobre o Vasco em Buenos Aires, outro em outro 2-0 sobre os cruzmaltinos, no Rio, e o da vitória de 1-0 sobre o Fluminense.

Após passagem fracassada pelo futebol espanhol, chegou em Liniers em 1990, logo sendo artilheiro do campeonato argentino de 1990-91, com 18 gols. Ao lado de Omar Asad, com 5 gols, foi o artilheiro do campeão argentino de 1993; até então, o Fortín só tinha a taça de 1968. González, que ainda é o único campeão pelos dois vizinhos do oeste portenho, integrou ainda os vencedores da Libertadores e Intercontinental de 1994, embora já na reserva de José Turu Flores para a dupla com El Turco Asad.

Se a rivalidade Ferro-Vélez caiu de produção, a de San Lorenzo e Huracán (visto tradicionalmente com o rótulo simbólico de “sexto grande”) continua acesa, apesar do igual desnível entre ambos: o dérbi é por vezes chamado de clásico desparejo, “clássico desparelhado”, favorável aos sanlorencistas, o que inclui aproveitar craques que originalmente eram quemeros. O meia Alberto Rendo, um dos dois únicos – o outro é Oscar Rossi – que defenderam a seleção argentina por Globo e Ciclón e naturalmente raro ídolo em comum, foi um deles, a ponto de hoje torcer pelos dois.

Rendo começou no Huracán e passou para o San Lorenzo. Veira, também “quemero”, fez o inverso

“Um dia, cheguei (…) ao treino do Huracán e me disseram: ‘que fazes aqui, não sabia que te vendemos ao San Lorenzo?’. ‘Quê?’, contestei. ‘Vão me matar’. Eu, que queria viajar 14 mil quilômetros para jogar na Itália, terminei caminhando as 14 quadras que separavam minha casa do campo do San Lorenzo…”, declarou El Toscano sobre sua venda, em 1965. Com os azulgranas, foi titular do campeão argentino em 1968, na primeira vez que um time conseguiu a taça de forma invicta no profissionalismo. Em 1970, ele “revirou” a casaca.

Leandro Romagnoli, maestro da fase áurea cuerva do início do século (Copa Mercosul 2001, Copa Sul-Americana 2002) e que vem carregando escapadas de rebaixamento, é outro símbolo do CASLA que torcia pelo vizinho. Seu pai não escondeu na véspera de um clássico: “que ganhe o Huracán por 4-3, mas com três gols do Pipi”, como Romagnoli é conhecido. O próprio ídolo maior do primeiro século do San Lorenzo, assim escolhido oficialmente em eleição no centenário, em 2008, também fora um assumido torcedor do rival. Trata-se do ex-atacante Héctor Veira.

Romagnoli hoje beija o “Ciclón”

Ele crescera no bairro portenho de Parque Patricios, reduto do Huracán. Mas foi no vizinho Boedo, sede sanlorencista, que começou a carreira, tornando-se ídolo nos anos 60 ainda que, já decadente, estivesse mais na reserva quando o elenco cuervo enfim conseguiu um título (em 1968). Em 1970, então, voltou às origens, juntamente com o colega Alberto Rendo. Mas já em 1973 Veira retornou ao Ciclón, ironicamente no único ano em que a Quema conseguiu ser campeã argentina profissional (aqui). Já aqui falamos sobre outros que passaram pelos dois clubes.

Carismático, El Bambino voltou a conquistar os azulgranas como técnico. Foi sob o comando dele que o San Lorenzo finalizou em 1995 um jejum de 21 anos sem troféus na elite. “Nasci Huracán, mas o San Lorenzo se meteu na minha alma”, ele já afirmou. A emoção nada contida com o gol do título – marcado, por sinal, pelo mesmo Esteban González de Ferro e Vélez – transparece bem isso, conforme o vídeo abaixo.

Sentiu falta de Boca e River? A rivalidade mais importante do país terá um especial só para si sobre aqueles que vestiram a casaca rival à que amavam. Em dois dias.

http://www.youtube.com/watch?v=UrLe50VY5EA

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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