Especiais

Quando um supertime caiu

Bertarelli, Soriano, Strembel, Artigas, Pedernera e Bedia; Donnola, Cruz, Bertini, Gandulla e Rossell

Não é de hoje que os clubes pequenos e/ou decadentes passaram a recrutar estrelas consagradas para seus elencos. Nem todos logram êxito. O caso de 1947, do Club Atlético Atlanta, figuraria bem em uma lista dos que fracassaram. Exatos 65 anos depois de seu primeiro rebaixamento, relembraremos o que esteve por trás da queda da equipe do bairro portenho de Villa Crespo, outrora uma das principais do país entre as pequenas e ausente da elite desde 1984.

Ele viu um lugar que poderia ter sido seu ser ocupado por outros clubes pequenos da Grande Buenos Aires mas já campeões nacionais, casos do arquirrival Chacarita (1969), Ferro Carril Oeste (1982, 1984), Lanús (2007), Banfield (2009) e Arsenal (2012), para não mencionar Vélez e Argentinos Jrs; estes dois têm hoje expressão internacional, mas há 65 anos eram similares aos Bohemios, ou talvez menores: já haviam sido rebaixados, enquanto tal vexame para o Atlanta só seria conhecido naquele ano.

Após ser penúltimo em 1946, o Atlanta abriu os cofres: foram treze reforços. O meia León Strembel, do Racing, vencera a Copa América de 1946. Alcides Ghiggia também veio, mas, ainda desconhecido, foi dispensado antes de firmar contrato. Os que mais impactaram foram as aquisições junto ao River: o goleiro José Soriano, o ponta Aristóbulo Deambrossi, Eligio Corvalán e a mais badalada, o atacante Adolfo Pedernera, penta nacional com o River e tri sul-americano com a Argentina (colega de Strembel em 1946) com apenas 28 anos. Sua contratação foi um recorde para a época, 140 mil pesos.

A 1ª rodada foi bem promissora. Usando o Monumental de Núñez, o estádio do River, os auriazuis venceram o Racing por 2×1, com dois do uruguaio Burgueño (como Ghiggia, também campeão mundial em 1950). 36 mil pessoas presenciaram a estreia oficial do Super Atlanta. Em seguida, mais de 33 mil ingressos foram vendidos no Gasómetro para a partida contra o Huracán, no maior público em uma partida nacional sem um dos cinco grandes (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo).

Se Ghiggia tivesse ficado no Atlanta, talvez o Maracanazo não ocorresse

Mas o oponente, o “sexto grande”, não quis ameaçar tal posto e impôs 4×0. A dura realidade foi confirmada no jogo seguinte, de volta ao Monumental: Independiente 3×0. Apenas na 14ª rodada o Atlanta voltou a vencer, em 3×0 no Banfield em Villa Crespo após seis derrotas seguidas. Já voltara ao lar, depois de usar o campo do River contra os grandes no início.

Após a segunda vitória, o time retornou ao Monumental, desta vez como visitante, pela última rodada do primeiro turno. E levou de 8×0 do River, a maior goleada do torneio. Ao fim da primeira metade, somava oito pontos, com apenas duas vitórias e seis empates.

O segundo turno não foi muito superior. O Atlanta só venceu duas vezes, contra Lanús e Vélez. E a derrota elástica da vez foi um 7×0 em visita ao San Lorenzo. Além do mais, em ambos os turnos, perdeu por 4×0 os clássicos contra o Chacarita. Ainda assim, chegou à reta final vivo, com três concorrentes na luta contra o descenso, a recair somente sobre o último colocado.

Na última rodada, Atlanta e Tigre estavam com 18 pontos, o Banfield tinha 19 e o Lanús, um a mais. O Tigre enfrentaria o Huracán, enquanto Banfield e Lanús travariam o clássico que têm entre si. O time da Villa Crespo, por sua vez, recebeu o River. Escalou Quiroga, Higinio García, Bedia, Bertarelli, Santamarina, Corvalán, Morandini, Pedernera, Burgueño, Gandulla e Rossell contra Grisetti, Vaghi, Luis Ferreyra, Yácono, Rossi, Ramos, Reyes, Moreno, Di Stéfano e Loustau.

Pedernera em capa de revistas em 1947. Na segunda, no Monumental com René Pontoni, seu concorrente na seleção. Era a 10ª rodada e o San Lorenzo venceria, por 1 a 0

Os visitantes haviam sido campeões na rodada anterior e naturalmente já não aspiravam nada mais. De fato, de acordo com Héctor Morandini, os adversários de 16 de novembro de 1947 não desejavam prejudicar um ex-colega: “O árbitro nos surrupiou. Não quero mencionar nomes, mas alguns jogadores do River não queriam que o Atlanta caísse. Muitos haviam sido companheiros de Pedernera, e durante a partida até lhe diziam: ‘dá-lhe, siga, que não vem ninguém’. Quer dizer, lhe avisavam que estava sozinho, sem marcação”.

Os ânimos realmente ficaram tensos no primeiro tempo por conta do juiz, Humberto Dottori. Para a torcida local, ele não assinalou um pênalti claro de Héctor Grisetti no ex-vascaíno Bernardo Gandulla. No início do segundo tempo, a situação piorou. Alfredo Di Stéfano, artilheiro do campeonato e que conseguira uma vaga no River justamente após a saída de Pedernera, marcou seu 27º gol no certame.

Os resultados paralelos não ajudavam: o Tigre venceria por 3 a 1 e o Clásico del Sur ficava em um 1 a 1 de compadres. Aos 31 minutos, então, o lateral bohemio Pascual Bertarelli, exaltado, acertou o joelho esquerdo de Néstor Rossi, dando início a bate-boca geral entre os jogadores. Alguns torcedores locais invadiram o campo e um agrediu o último algoz do Atlanta.

Di Stéfano carregado após ser nocauteado

Enquanto Di Stéfano saía carregado – como ferido, não como goleador ou campeão -, o juiz decidiu finalizar a partida, entendendo não haver segurança. O agressor foi detido ali mesmo, apesar de tentar camuflar-se entre outros torcedores, o mesmo ocorrendo com Bertarelli depois de três dias, em que foi considerado foragido (logo liberado e depois, absolvido). Já o Atlanta sofreu a sanção de quatro jogos sem poder atuar em Villa Crespo.

O clube, todavia, não ficou muito tempo na segunda divisão. E por um fator diretamente ligado a personagens da partida de 65 anos atrás: uma greve de jogadores em 1948 que paralisou o futebol argentino. Não se vendo atendidos, muitos grevistas, sindicalizados após reunião na casa do goleiro Soriano, decidiram ir para a atrativa Colômbia, que se desligara da FIFA para poder se extravasar financeiramente e se tornara um Eldorado.

Pedernera e seus adversários Di Stéfano, Rossi e Hugo Reyes se juntariam no Millonarios de Bogotá. Já a segundona argentina de 1948, suspensa quando sob liderança do Argentinos Jrs, acabou cancelada. Os dirigentes da AFA, na canetada, decidiram que os promovidos seriam os últimos rebaixados: o Ferro Carril Oeste, de 1946, e os Bohemios, que jamais tentaram novamente as travessuras de 1947.

Millonarios em 1951, a reunir Di Stéfano, Pedernera (os dois do meio, em pé) e Rossi (quinto agachado)

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

13 + 15 =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.