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100 anos do primeiro título do Quilmes e o fim de uma era

Campeões de um século atrás pelo Quilmes, último campeão da “era britânica” do futebol argentino

2012 é um ano de festa para o Quilmes. Um surpreendente acesso à primeira divisão, no primeiro semestre, coroou um ano de comemorações redondas: o clube, a um mês e meio de completar 125 anos, comemorou ontem, no último sábado de 13 de outubro, o centenário da definição de uma tumultuada edição do campeonato argentino. O então Quilmes Athletic Club sagrava-se campeão com duas rodadas de antecedência, após uma série de reviravoltas.

Naqueles tempos, os cinco grandes clubes argentinos ainda engatinhavam: apenas o River Plate e o Racing já se encontravam na primeira divisão; o River, por sinal, terminaria em último em 1912. Os grandes vencedores eram as equipes da comunidade britânica, que haviam obtido todos os títulos do campeonato argentino: o Lomas Athletic tinha cinco e a Lomas Academy, virtualmente seu time B, outro. O Belgrano Athletic detinha três. O St. Andrew’s vencera um, o primeiro.

Os outros dez foram conquistados pelo Alumni Athletic Club, naturalmente o de maior destaque entre seus pares: até os dias atuais, foi ultrapassado justamente apenas pelos ditos cinco grandes (Boca Juniors, Independiente e San Lorenzo são os outros três). O Alumni, porém, não era um clube autossustentável. Puristas, seus membros defendiam ferrenhamente o amadorismo, com os dividendos financeiros da instituição sendo repassados para a caridade, para a Buenos Aires English High School (o colégio em que a equipe fora formada) ou para a liga argentina, e nem tanto para benefício próprio.

Após o título de 1911, o time que era a base da seleção argentina (que em certos momentos chegou a utilizar até oito jogadores de uma vez dele) deixou os gramados, embora sua extinção só fosse ser oficialmente confirmada em 1913. E foi justamente para o Quilmes que grandes figuras do Alumni se dirigiram, a despeito – ou, talvez, por causa – de esta equipe ter ficado em último no certame de 1911. Os cerveceros eram igualmente outro clube anglo-argentino, não por acaso trajando-se de branco e azul-marinho, cores das seleções inglesa e escocesa. Eles seriam justamente aqueles que fechariam a era “britânica” do futebol argentino.

Lionel Peel Yates, Ernesto Brown (volantes), Jorge Brown e Juan Brown (zagueiros) eram os jogadores de seleção que saíram do Alumni para o Quilmes, com os três últimos sendo componentes de uma célebre família que teve outros três membros no selecionado argentino. O torneio começou em 14 de abril, com os jogos pré-programados nele para o Alumni mantidos, apesar do notório saber de que o decacampeão não estaria presente, mesmo inscrito. Só após o terceiro W.O. (um deles, contra o próprio Quilmes), a equipe foi desafiliada.

O Alumni campeão argentino de 1910. No ano seguinte, foi campeão novamente e deixou o futebol. Os familiares Jorge Brown (quarto em pé), Juan Brown (último em pé) e Ernesto Brown (segundo sentado) e outros colegas foram para o Quilmes de 1912

Uma nova reviravolta ocorreu durante o campeonato, a reunir com o Quilmes as equipes do River Plate, do Racing, do Belgrano Athletic, do San Isidro, do Estudiantes de Buenos Aires, do Estudiantes de La Plata, do Porteño e do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires. Estes três últimos clubes se desafiliaram da Associação Argentina de Futebol, admitida na FIFA em 1 de julho. Naquele mesmo mês, tais dissidentes deram início a um campeonato em paralelo.

Sob a premissa de não concordar em cobrar ingressos de seus sócios, o Gimnasia liderou uma cisão, trazendo consigo o Estudiantes de La Plata, o Porteño e equipes da segunda divisão (dentre as quais, Atlanta, Independiente e o Argentino de Quilmes, rival dos futuros campeões de 1912) para disputar outro campeonato argentino. Eles fundaram a Federação Argentina de Futebol para organizá-lo. Tal situação perduraria por mais dois anos, até uma reunificação em 1915. Por conta da saída das referidas três equipes, os jogos já realizados contra as mesmas foram anulados, assim como o rebaixamento – por esta razão, o River Plate não caiu, algo que só lhe ocorreria 99 anos depois.

Além dos Brown e de Peel Yates, o Quilmes tinha outros valores. O goleiro Carlos Pearson conseguiria uma oportunidade na seleção em dezembro, após o título. O meia Cecil Russ já havia defendido a seleção mesmo em 1911, e voltaria a ser aproveitado no ano seguinte por conta da campanha campeã. Harold Lloyd também já havia jogado pela Argentina, e formou boa dupla defensiva com o recém-chegado Juan Brown.

Mas o maior destaque destes há de ser dado a Sydney Buck. Assim como Lloyd, Peel Yates e Russ, foi outro inglês que jogou pela Argentina. Buck, centroavante, havia se mudado para Buenos Aires havia oito meses e logo tornou-se capitão. Ele já era algo conhecido dos jogadores argentinos: em 1910, por conta do centenário da Revolução de Maio, o movimento que desencadeou a independência do Vice-Reino do Rio da Prata, organizou-se um pequeno torneio entre Argentina, Uruguai e Chile.

Naquela ocasião, Buck, que atuava no Montevideo Wanderers (onde fora campeão uruguaio em 1909), jogou pelos charruas. Este britânico é o único a ter defendido tanto a Celeste quanto a Albiceleste, pela qual atuou em amistoso de 1912 juntamente com Russ e os três Brown, justamente contra o Uruguai, em Montevidéu. Os rivais ganharam por 3 a 0. Aquele amistoso de 25 de agosto de 1912 foi a partida em que a Argentina mais utilizou de uma vez jogadores do Quilmes, uma amostra do bom momento do clube, a cerca de dois meses do título.

Carlos Pearson, Juan Brown, Sydney Buck e Cecil Russ, quatro dos seis “cerveceros” que estiveram na seleção argentina em 1912; Ernesto e Jorge Brown foram os outros

No total, foram sete vitórias em dez jogos, com um empate e duas derrotas, a segunda destas vinda já após o título estar assegurado: o clube não se apresentou para jogar diante do Racing, que levou os pontos pelo W.O. – com a temporada de futebol encerrada, o QAC direcionara seu foco para a de críquete, tão inglês quanto. O clube de Avellaneda, por sua vez, seria justamente o que daria início à “argentinização” do campeonato argentino, ao empilhar sete títulos seguidos (ainda um recorde) a partir da edição seguinte. No primeiro turno, a futura Academia chegou a abrir 2 a 0, mas Juan Brown, de pênalti, e Buck, duas vezes, decretaram uma grande virada nos últimos treze minutos.

A outra derrota ocorreu ainda no início do torneio, em 26 de maio, para o Estudiantes de Buenos Aires, que venceu por 1 a 0. E, diante deste mesmo adversário, foi garantido a conquista que acaba de completar cem anos. Carlos Pearson, Harold Lloyd, Enrique Lucas, Hugo Reid, Cecil Russ, Ernesto Brown, Juan Stanfield, W. Gabbitas, Sydney Buck, E. Fenn e Víctor Weiss foi a escalação campeã. Seria o único jogo de Lucas, um dos poucos não-britânicos do Quilmes (que inicialmente chegou a ser restrito à comunidade anglo-saxã, o que motivara a criação do rival Argentino), na campanha.

W. Gabbitas, autor de um dos gols do título

Já Schneldewin, R. Lennie, C. Krieger, J. Stidson, I. Ivanissevich, E. Wins, J. Luperne, José Susán, A. Spinelli, A. Thompson e S. de la Barrera foram os alvinegros de Caseros, que abriram o placar: Susán, cujo irmão Maximiliano jogara no Alumni (ambos defenderam a Argentina), anotou aos 27 minutos do primeiro tempo. A virada do título ocorreu nos últimos treze minutos, a exemplo daquela vitória sobre o Racing. Aos 33, Gabbitas empatou, e Weiss deu a vitória aos 38 minutos do segundo tempo.

Outra prova da superioridade cervecera reside no fato de que uma das vitórias foi simplesmente um 11 a 0 no vice-campeão, o San Isidro, que terminou com onze pontos contra quinze do campeão – a diferença de quatro pontos em um torneio que terminou restrito a seis times era bem grande, ainda mais em uma época em que a vitória só valia dois e não três.

A Argentina utilizou cinco quilmenhos, incluindo o outrora “uruguaio” Buck, precisamente uma semana depois dessa goleada, a contar com quatro tentos dele (metade do que fez em todo o torneio, do qual foi o vice-artilheiro, com um a menos do que os 9 do racinguista Alberto Ohaco), três de Pedro Raggi, dois cada de Russ e Fenn e um de Stanfield.

O Quilmes só voltaria a ser campeão argentino da primeira divisão em 1978 (ainda a última vez), com mais de meio século a enchê-lo de diferenças, algumas similares às atuais. O profissionalismo no futebol já não era discutido, e sim o início da era dos jogadores milionários. O esporte já era uma enorme paixão nacional, com os hispânicos e outros imigrantes carregando-o de influências na maior fluidez do jogo, na ginga e na catimba.

Por fim, o clube que fechou a era britânica do futebol argentino e é um de seus poucos remanescentes no futebol, assim como o Ferro Carril Oeste, o Rosario Central e o Newell’s Old Boys (os demais migraram para o rúgbi, esporte também tentado por QAC e FCO), já se nacionalizara até no nome: desde década de 50, chama-se Quilmes Atlético Club.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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