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Marcar em final de Copa seu único gol pela seleção e jogá-la com ombro deslocado: 60 anos de José Luis Brown

Ontem comentamos os 60 anos de Oscar Garré, defensor de pouca técnica e por isso, talvez, o mais questionado campeão da Copa de 1986. Colega seu naquele mundial, José Luis Brown, hoje, também faz 60 anos. El Tata Brown também não era virtuoso com a bola nos pés e foi outro de convocação criticada, mas tinha bem mais estrela, conforme o título autoexplicativo. Afinal, em seus cinco primeiros jogos pela seleção, não venceu. E só foi titular na Copa em função da doença do craque Daniel Passarella. Com muita fome de glória, conseguiu uma história de cinema que cheiraria a pieguice inverossímil se fosse ficcional. Vamos contá-la.

Quem promoveu El Tata Brown no futebol profissional, em 1975, foi o mesmo treinador que o levaria à Copa: Carlos Bilardo (que folcloricamente sempre o chamou de “Bron”, não “Braun”), ex-volante do Estudiantes tri seguido na Libertadores entre 1968-70, passara a treinar o clube, que de tanto focar-se nos torneios internacionais vinha acumulando resultados domésticos ruins – brigou contra o rebaixamento em 1970, 1971 e 1972. Torcedor do Boca na infância, Brown passara a desejar o Estudiantes desde que vira o estádio do clube em uma excursão escolar. “Quis ir de barco para ir ao Uruguai ver o desempate com o Palmeiras, mas foi impossível”, declarou em longa entrevista à El Gráfico em 2011, em referência à final da Libertadores de 1968.

Também em 1968, dava seus primeiros passos em clubes locais de sua Ranchos natal – cidadezinha cujo estádio municipal seria batizado de José Luis Brown em 2009. Graças a um amigo que já jogava nos infantis do Estudiantes, conseguiu um teste e foi aprovado na véspera do fechamento da janela de passes. “Me levaram a uma oficina para falar com meu pai. (…) A comunicação foi uma odisseia: tinha que pedir uma chamada de La Plata a Brandsen, de Brandsen e Chascomús e daí para Ranchos”, relembrou a tecnologia da época.

“Eu me levantava às 5h20, às 5h50 tomava o ônibus a La Plata, chegava, treinava, e às 10h50 tomava o da volta a Ranchos. Passava em casa para comer algo e ia trabalhar no diário La Palabra. Chegava morto à noite. Desde o dia em que comecei no futebol, o levei a cabo com total seriedade”. Ainda assim, a pressão paterna chegou a fazê-lo desistir, mas o técnico infantil foi pessoalmente requisitar-lhe a volta. A primeira partida adulta foi um amistoso contra o Stal Mielec, clube polonês, na qual marcou ninguém menos que Grzegorz Lato, artilheiro da Copa no ano anterior. Três dias depois, estreava oficialmente, em um 0-0 contra o River pelo Torneio Metropolitano. Os pincharratas ficaram em 5º e por um mísero ponto não ganharam o Torneio Nacional.

Como o River ganhou os dois torneios, o time de La Plata esteve no páreo para a outra vaga argentina na Libertadores de 1976, batendo no tira-teima o forte elenco do Huracán, vice do Metropolitano. Mas eram tempos de regulamento rigoroso e só o líder avançava da fase de grupos. De novo por um ponto, o River levou a melhor. Os platenses seguiram fortes no curto prazo, terminando em 3º no Metropolitano de 1976 e caindo só nas semifinais do Nacional de 1977, mas só voltaram a postular seriamente as taças no início da década seguinte.

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Comemorando seu gol no título de 1982 do Estudiantes. Pelo Atlético Nacional, estreou na seleção. Não deixou muita marca por Boca e Racing

No Torneio Nacional de 1982, os alvirrubros caíram nas semifinais para o Quilmes. O desafogo veio no campeonato seguinte, o Metropolitano, encerrado só no início de 1983. O clube enfim voltou a ser campeão, com um Brown decisivo marcando gols nas duas últimas rodadas. Foi o terceiro título argentino do Estudiantes, apenas o segundo no profissionalismo e o primeiro desde 1967: os pinchas tinham mais títulos internacionais do que domésticos. Bilardo era o técnico e por causa dessa conquista foi requisitado para substituir na seleção César Menotti.

Como se não bastasse, ainda no primeiro semestre de 1983, já sob o comando técnico de Eduardo Luján Manera, o clube abocanhou também o Torneio Nacional, logrando seu único bicampeonato argentino – detalhamos neste outro Especial o raro bicampeonato semestral. Aqueles foram os únicos troféus profissionais do Estudiantes não obtidos pela família Verón. E isso que o time paralelamente disputava também a Libertadores, para a qual estava classificado pela conquista do Metropolitano. Brown e colegas estiveram bem perto de devolver o Pincha à final.

Faltou um gol para forçar um jogo-extra contra o Grêmio no triangular-semifinal: o empate em 3-3 na épica batalha de La Plata (na qual Brown não jogou) era favorável aos gaúchos. A eliminação, em julho, marcou a despedida de Brown do Estudiantes: o forte narcofútbol colombiano da época adquiriu o passe do zagueiro, levado ao Atlético Nacional. Foi já como jogador da equipe paisa que ele, em agosto de 1983, estreou pela seleção, em um 2-2 com o Equador em Quito pela Copa América. A saída do Estudiantes foi traumática: o jogador reclamou publicamente de não ter recebido o percentual que lhe cabia e ficou proibido de pisar novamente no clube.

Brown, ainda em 1983, participou de uma invencibilidade de 19 jogos do time de Medellín, entre a 14ª das 26 rodadas do Torneio Finalización e a 6ª rodada do octogonal final. Mas, uma vez derrotados, pelo Junior de Barranquilla, os alviverdes decaíram e terminaram em 3º, atrás do próprio Junior e do campeão América de Cali. Primeiro jogador da seleção argentina importado do futebol colombiano, Brown seguiu no Nacional e na Albiceleste pelo ano de 1984. Em 1985, foi emprestado ao Boca, clube da infância. Mas, apesar dos ótimos 6 gols em 35 partidas, não se mostrou um defensor confiável.

“Estava fora de forma, não rendeu e se desvinculou, acertado com o Deportivo Español. Ninguém poderia acreditar que este zagueiro lento e inseguro fosse o líbero sólido e chave na seleção argentina campeã do mundo”, resumiu o site estatístico Historia de Boca. O desempenho não o tirou da seleção em 1985, com seis partidas ainda que nenhuma pelas eliminatórias: Passarella seguia titularíssimo e vital para a complicada classificação.

Brown no Deportivo Español, oficialmente o seu clube na época da Copa. À direita, em dois momentos com Héctor Enrique, seu colega em 1986: como dupla técnica do Almagro e na seleção sub-17

No início de 1986, no meio da temporada 1985-86, o empréstimo de Brown foi mesmo redirecionado ao nanico Deportivo Español, recém-promovido à elite naquela temporada. Naquele torneio, defendeu o Boca até a 24ª rodada, em 18 de dezembro – curiosamente, contra o próprio Español (1-1). Em meio à pausa natalina no campeonato, ainda jogou pelo Boca um triangular amistoso em Rosario contra o River (em 20 de dezembro) e Rosario Central (dia 22) e então estreou oficialmente pelos Gallegos na 28ª rodada da liga de 1985-86; foi em um 1-1 contra o Instituto de Córdoba, em 9 de fevereiro. E nem ali o zagueiro de seleção rendeu, jogando só outras duas vezes pelo novo clube, que praticamente não precisou dele para terminar na surpreendente terceira colocação. Seus outros jogos, também fevereiro, foram o 1-0 sobre o Unión pela 30ª rodada e em irônico triunfo de 2-1 em La Plata sobre o Estudiantes pela 31ª.

Brown padecia desde meados de 1984 de problemas crônicos no joelho, após lesiona-lo contra o Uruguai. E ficou virtualmente sem clube a três meses do mundial. Ainda assim, Bilardo bateu o pé e convocou seu escudeiro, que, sem se dar ao luxo de se operar, treinava individualmente três vezes na semana e outras três coletivamente para conseguir forma aceitável. Soube no dia da estreia que seria titular, tanto que no dia anterior havia se permitido comer sanduíches, o que viraria superstição geral: “éramos vários. Como ganhamos, o que fizemos antes da Itália? Repetir. Uma vez, nos viu o Dr. Madero [ex-jogador do Estudiantes de 1968-70, virara médico e foi outro trazido por Bilardo à delegação]. Bilardo lhe dizia: ‘sai pra lá, Raúl, está tudo bem’. Se sentou conosco e cumprimos a superstição. Madero nos disse de tudo, que éramos uns irresponsáveis”, detalhou na entrevista de 2011.

Naquela mesma entrevista, contou como soube da titularidade, em pleno dia da estreia: “Passarella não estava bem, mas ninguém me havia dito nada. No dia da estreia, fui tomar café da manhã e cruzei com Carlos [Bilardo], que saía. ‘Oi Bron, como estás?’, me pergunta. ‘Bem, enfim chegou o dia’, respondi. Se foi, em seguida deu volta e me gritou: ‘Ah, Bron, saiba que jogará você, certo?’. Sabes o que foi esse café da manhã para mim? Se te digo que não fiquei nervoso, minto, mas tive personalidade e me senti seguro”.

Passarella era o companheiro de quarto de Brown e não se recuperou. E o novo titular se manteve mesmo tendo varado a noite prévia à final, insone de tanta ansiedade. Maradona, após brilhar contra Inglaterra e Bélgica, foi vigiado de perto pela Alemanha Ocidental. Coube aos colegas jogarem por Dieguito, ainda assim presente de forma curiosa no gol do zagueiro: Brown apoiou-se nas costas do craque para elevar-se mais rumo à bola levantada na área em falta cobrada por Jorge Burruchaga. Deu certo: Harald Schumacher não saiu bem e a bola foi em direção na medida para o líbero, que saiu gritando antes mesmo de vê-la entrar, se ajoelhou e chorou.

Um dos últimos jogos de Brown, penúltimo em pé: amistoso não-oficial da seleção contra o Monaco, em 14 de janeiro de 1990. Jogaria até abril: sem físico, ficaria fora da Copa do Mundo

“Esse gol mudou meu documento. Desde então passei a ser: ‘José Luis Brown, o que fez gol na final do mundo (…). Te explode o peito, te explode tudo… o primeiro a chegar foi El Checho [Sergio Batista], nem me lembro o que me disse, o único que fazia era gritar e chorar. Pense que na história do futebol argentino há só cinco caras vivos que metemos gols em uma final do mundo, e eu sou um desses cinco”, explicou naquela entrevista de 2011. Em outra, ao Clarín, em 1998, declarou que “não há nem haverá dia da minha vida que não pense nesse gol. Foi a sensação mais forte que tive na minha carreira, porque me concretizou tudo. Quando parti ao Mundial, me acompanharam só minha mulher, meus filhos e um amigo. E no dia depois da final, havia muita gente me esperando. No início, foi muito duro. Se diziam coisas que ia ao México porque era amigo de Bilardo”.

Mas Brown não ficou marcado só pelo gol. Já no segundo tempo, deslocou o ombro ao chocar-se com um rival. Rechaçou ser substituído e seguiu, tal como o técnico adversário Franz Beckenbauer fizera em 1970. Sem poder esticar o braço, mordeu a própria camisa para rasga-la e usou o buraco para apoiar a mão. Ainda assim, desarmou limpamente o craque Karl-Heinz Rummenigge na grande área nos minutos finais. Nos vestiários, lhe fizeram uma chamada a Ranchos: “quase morro, estava todo o povo da municipalidade, se escutava os aplausos”. Sucesso que “custou-lhe” o casamento. É o que ele, já bem humorado, teria jurado ao fim daquela entrevista…

Brown ainda se manteria na seleção em quase todo o ciclo pré-Copa seguinte, defendendo-a como jogador do Brest (Copa América 1987), do Real Murcia (Copa América 1989) e do Racing, em dois amistosos não-oficiais pré-Copa em 1990: derrota de 2-0 para o clube Monaco em janeiro e vitória de 1-0 sobre a equipe norte-irlandesa do Linfield já em abril… embora não entrasse em campo desde 1989 pelo próprio clube de Avellaneda; o problema crônico nos joelhos voltara e, por mais que Bilardo aguardasse até o último momento pelo pupilo, El Tata terminaria barrado de nova Copa do Mundo (embora seguisse na delegação, convertido em um dos assistentes do treinador). Teve uma oferta do Lanús, então na segunda divisão, mas desistiu de prosseguir a carreira.

A fidelidade mútua com Bilardo ainda teria mais capítulos; Brown trabalharia no Boca em 1996 como assistente técnico do Narigón. Ainda tentou uma carreira solo, sem maior relevo (na primeira divisão, só trabalhou com o “maradoniano” Almagro da temporada 2000-01 e no Nueva Chicago no campeonato seguinte e em ambos brigou para não cair), embora até trabalhasse à frente da seleção argentina sub-17 entre 2007 e 2009. Detalhes a quem não precisava de mais nada.

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A glória maior: malandro, Brown apoiou-se em Maradona para a impulsão necessária ao cabeceio que abriu o placar na final da Copa 1986

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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