Conheça os principais personagens de origem árabe no futebol argentino
Nota originalmente publicada em 26-11-2011 (pelos onze anos da inauguração do Central Cultural Islâmico Rei Fahd, maior mesquita de Buenos Aires, da Argentina e da América Latina), revista, ampliada e atualizada
O duelo inicial da Argentina na Copa do Mundo do Qatar será contra outra nação árabe, a principal da península. O ano de 2022 também marca os cem anos em que a região viu o Império Otomano desaparecer e dar lugar a diferentes países na região. À altura de 1922, a Argentina já vinha há anos recebendo numeroso contingente de imigrantes da área, normalmente com cidadania ainda turca, o povo que governava aquele império – o que fez os jogadores árabe-argentinos serem comumente apelidados de El Turco, embora o termo não seja correto nem etnicamente nem politicamente. Dentre eles, mais de um já figurou em Copa do Mundo com a Albiceleste e teve quem já decidiu Libertadores e Mundial Interclubes. Vale relembra-los, considerando ancestralidade na península arábica e/ou do golfo pérsico como um todo e não apenas a Arábia Saudita.
Vélez, o clube árabe?
Ao menos nas quatro primeiras divisões argentinas, não há um clube da colônia árabe, diferentemente de alguns antigos compatriotas, os armênios – que fundaram em 1962 o Deportivo Armenio (hoje na Primera B Metropolitana, a terceira divisão) e tiveram alguns jogadores de certo relevo a ponto de figurarem nos cinco grandes, embora os esportistas argentinos de origem armênia mais prestigiados viessem a se dedicar a outros esportes: o lutador Martín Karadagian e o tenista David Nalbandian. Vale a menção a justamente um apelidado de El Turco, Eduardo Abrahamian, breve treinador de Messi na base do River.
Se há um clube que poderia ser identificado com os árabes, seria um mais famoso pelos laços ítalo-argentinos mesmo: o Vélez. Na década de 60, a principal figura do primeiro título argentino do time, no Nacional de 1968, foi Omar Wehbe, quinto filho de uma imigrante libanesa. Tendo a seu lado no ataque fortinero um Carlos Bianchi ainda praticamente um debutante, foi o artilheiro do certame com 13 gols, três deles no jogo decisivo contra um Racing recém-campeão mundial, mas que perdeu por 4-2. El Turco Wehbe marcou um total de 56 gols em 95 partidas nos cinco anos em que ficou no Vélez, em uma carreira abreviada por lesões (que lhe atrapalharam também com mais oportunidades na Seleção Argentina) aos 27 anos de idade, em 1971, já decadente e no Chacarita. Conseguiu jogar quatro partidas oficiais pela seleção, embora todas amistosas, entre 1967 e 1969.
Depois dele, a instituição ainda contou com o meia Julio Asad – pronunciado “Assad”, tal como na família que governa há meio século a Síria. Viveu 17 anos no clube desde as categorias de base, deixando-o em 1977 para jogar no Racing. Antes, chegou a disputar a Copa América de 1975 pela Argentina (marcou gol no Brasil no Mineirão); fez parte do primeiro ciclo de jogadores utilizados pelo técnico César Menotti quando este assumiu a seleção, em 1974. Assim como o antecessor, porém, teve sua trajetória no selecionado e nos gramados encurtada por lesões ainda antes dos 30 anos, quando estava no Colón.
Como técnico, Julio Asad obteve títulos de acesso no Riestra, Defensores de Belgrano e Leandro N. Alem e campeonatos nacionais no Equador (por Olmedo e Deportivo Cuenca). Também fez sucesso próximo das raízes: na Arábia Saudita, foi eleito o técnico do ano em 2003, quando treinava o Al-Nassr, e, com o mesmo time, obteve uma Copa local em 2008. No final daquela década, o Vélez contou com Eduardo Asad, irmão de Julio, e Omar Mehmed, que não tiveram tanto relevo. Mas reforçaram os laços com a comunidade, que voltaria a ser representada fortemente nos anos 90, com novos Turcos.
O mais destacado na fase noventista foi Omar Asad, primo de Julio e Eduardo – embora a grande diferença de idade tenha gerado versão bastante difundida, mas errônea, de que seria sobrinho destes. Inclusive, no início da carreira Omar chegou a ser apelidado de El Turquito Asad, pois El Turco Asad ainda mais famoso era Julio. Após ser reprovado em 20 equipes, incluindo o próprio Vélez, Omar conseguiu uma oportunidade ali em uma segunda tentativa e debutou em 1992. No início, o novo Turco Asad foi muito pé quente. Logo no ano seguinte, o Fortín obteve o Clausura 1993, o primeiro título desde aquele de 1968 – com Carlos Bianchi agora na direção técnica.
Omar, apesar dos quilos a mais, se mostrou especialmente decisivo no ano seguinte, nas duas mais importantes e improváveis conquistas de um clube que na Argentina ainda tinha pequeno porte: na Libertadores, os de V destronaram o bicampeão das duas edições anteriores, o São Paulo, em uma decisão por pênaltis no Morumbi em que atuaram boa parte do tempo normal com um a menos. Asad fizera o único gol fortinero da decisão, na vitória da primeira partida, no José Amalfitani. Na fase de grupos, já havia marcado gols nos dois jogos com o Cruzeiro e na partida em casa contra o Palmeiras.
No final do ano, o Fortín deveria enfrentar o Milan, que nada mais era do que uma Seleção Italiana com Rossi no lugar da Pagliuca e Savićević no de Baggio, tendo ainda um Boban e um Desailly: Maldini, Baresi, Albertini e Massaro haviam jogado a final da Copa do Mundo (os três últimos bateram pênaltis contra o Brasil), para a qual haviam ido juntamente com os colegas Donadoni, Tassotti e Costacurta. Na final europeia, humilharam o favorito cruijffiano Barcelona de Romário e Stoichkov (duas das estrelas daquela Copa) com um inapelável 4-0. Antes da partida em Tóquio, o técnico milanista, Fabio Capello, desdenhou: declarou nunca ter ouvido falar do time argentino e, ao saber que se tratava de um time de bairro, afirmou que equipes assim na Itália seriam no máximo de uma terceira divisão.
Asad, de fato, admitiu que ele e os colegas mal conseguiam dormir na véspera de tanto pavor. O que se viu em campo, porém, foi outra postura. No início do segundo tempo, o Vélez abriu o placar, de pênalti. Foi aproveitando uma bola mal recuada de Costacurta para Rossi que, sete minutos depois, Asad marcou sem ângulo (e equilíbrio) um belo gol, decretando números finais à partida – ele, que jogou aquela Intercontinental com 93 quilos, seria eleito ainda o melhor em campo. Um time de bairro ganhava o mundo como nunca se viu antes ou depois.
Porém, assim como Julio Asad e Wehbe, Omar viu a carreira logo ser atrofiada a partir de 1995. Naquele ano, já fora do melhor momento, ainda conseguiu fazer seus dois únicos jogos pela Argentina, no primeiro semestre. No segundo, lesionou-se seriamente pela primeira vez, em um clássico contra o Ferro Carril Oeste. E o Fortín conseguiu sobreviver sem o talismã, faturando aquele torneio e emendando-o com o bicampeonato no Clausura 1996. Asad conseguiria voltar em 1996 a tempo de ser reserva importante nas finais da vitoriosa Supercopa – por sinal, contra outros brasileiros, os do Cruzeiro -, atraindo um pênalti (convertido por Chilavert) que resultaria na primeira vitória do futebol argentino no Mineirão.
O novo Turco Asad, contudo, logo teve mais recaídas nas lesões até entregar os pontos em 2000, passando a treinar as categorias de base do Vélez. Como treinador, classificou o Godoy Cruz pela primeira vez à Libertadores e conseguiu em 2020 o primeiro título boliviano do Always Ready. Já dedicamos este outro Especial ao talismã das taças internacionais fortineras. O Vélez, em paralelo à saga de Omar Asad, foi embalado por outros dois Turcos nos anos 90, os irmãos Husaín – corruptela do sobrenome Hussein para o espanhol.
Claudio Husaín era reserva no time que ganhou tudo entre 1993 e 1994. Esse volante combativo (por vezes excessivamente) esteve na seleção sub-23 campeã dos Jogos Pan-Americanos de 1995 e enfim firmou-se em 1996 no clube, com direito a 100% de participação naquela conquista da Supercopa 1996. Em 1997, El Turco Husaín já chegava à seleção, na equipe experimental testada por Daniel Passarella na Copa América. O volante não conseguiu assegurar vaga na Copa do Mundo de 1998, mas firmou-se como um esteio no Vélez no ciclo pós-Bianchi, seguindo nas convocações da seleção com o sucessor Marcelo Bielsa (que lhe treinara no Vélez campeão argentino de 1998, último troféu da década dourada velezana) e cavando em agosto de 2000 uma transferência ao River.
Em 1995, foi a vez de Darío Husaín, irmão mais novo de Claudio, ser lançado no time adulto do Fortín. Darío começou com participações esporádicas nos títulos velezanos entre 1996-98, firmando-se mais justamente na entressafra atravessada na virada do século. No fim, Claudio foi o Husaín com carreira de maior relevo, desde uma transferência ao Napoli até sua convocação à Copa do Mundo de 2002 como um dos únicos chamados do futebol local por Bielsa, junto de Ariel Ortega. Ambos eram do River recém-campeão do Clausura, e o clube de Núñez chegou a juntar os dois irmãos no título do Clausura seguinte, o do primeiro semestre de 2003.
Darío não chegou a se firmar no Millo, sendo dispensado já no início de 2004. Claudio, por sua vez, não virou exatamente um ídolo imortal por lá, mas foi um querido filho pródigo em tempos de vacas humildes, com três diferentes passagens pelo River. Na década passada, então, o Vélez encheu-se de esperanças com um filho da casa: Yamil Asad, filho de Omar, foi profissionalizado como meia-atacante aos 19 anos, em 2013, com a equipe então vivendo novo auge recente (quatro títulos entre 2009 e aquele mesmo 2013). Mas sucumbiu à pressão de sobrenome tão ilustre no bairro de Liniers e não conseguiu ser sombra dos familiares: só registrou quatro golzinhos, empréstimos à MLS e atualmente integra a Universidad Católica.
Outros árabe-argentinos de destaque
Cronologicamente, um primeiro a merecer menção na história do futebol argentino é o volante José Eduardo Nehín, pelo fato de ter sido o primeiro (sendo por muito tempo o único) Turco a ter figurado em uma Copa do Mundo. Também foi o primeiro da província de San Juan. Foi justamente na obscura participação argentina no mundial de 1934 – tanto pela campanha (o torneio iniciou-se já em mata-matas e a Argentina caiu logo no primeiro) quanto pela empolgação quase nula que a seleção despertou no povo e imprensa, mesmo antes do embarque à Itália.
O motivo é que a associação reconhecida pela FIFA era a amadora, enquanto as equipes mais populares do país jogavam desde 1931 em uma liga profissional, ainda “pirata”. Ainda houve apelo para que tais times liberassem seus astros, mas os custos e o tempo da longa viagem de navio à Europa somados aos desfalques de seus principais atletas fizeram com que estes clubes se negassem. Assim, foram reunidos atletas do campeonato argentino amador (que só duraria até aquele mesmo 1934) e de clubes do interior do país. Nehín vinha de um destes, o Sportivo Desamparados, da cidade e província de San Juan, em que cuja seleção Nehín atuava na Copa Beccar Varela – semelhante aos campeonatos de seleções estaduais que existiam no Brasil. Vice-campeão com a seleção sanjuanina na edição de 1931, ainda é o único jogador que a Argentina chamou do Desamparados.
De arremate potente, Nehín foi incluído após sair-se bem contra o jovem Enrique Chueco García (então no Rosario Central e que só se tornaria uma estrela posteriormente) em jogo-treino. Em mensagem a um jornal sanjuanino, prometeu que os amadores demonstrariam que “também eram argentinos”. Ele foi inclusive o capitão naquela partida em Bolonha, contra a Suécia. Os chacareros (como os amadores eram conhecidos) perderam, mas de forma digna, estando duas vezes à frente do placar. A dez minutos do fim da partida, Knut Kroon fez o gol da árdua vitória sueca, decretando a pior participação argentina em Copas.
Foi o único jogo oficial do Turco Nehín pela Albiceleste. Como o grosso dos seus colegas daquele grupo, não ficou famoso após a Copa. Ela até lhe deu vitrine para ser sondado pelo River, mas, naqueles tempos pré-economicamente glamourosos do futebol, a visão de longo prazo do pai do jogador proibiu-lhe de deixar o emprego de bancário em San Juan, ordenando-lhe que se contentasse com o esporte somente nos domingos locais. Nehín faleceu na sua mesma San Juan natal, em 1957, eletrocutado em um acidente doméstico.
Os primeiros árabe-argentinos a terem de fato grande destaque atuaram curiosamente juntos, no Racing, sendo ambos peça-chave: o meia-esquerda Llamil Simes e o ponta-esquerda Ezra Sued, tão bem entrosados que originaram lendas de que conversariam em árabe nas partidas para despistar os adversários. O nome Llamil, no “Yeísmo” que caracteriza a pronúncia castelhana ao dígrafo LL na América Espanhola, é lido da mesma forma que Yamil, o nome do filho de Omar Asad – “Djamil”. Equivalem à versão portuguesa de Jamil, nome que no original árabe também se desdobra nas versões Djamel, Jamal ou Gamal, dentre outras.
Sued, que era judeu e cuja miopia o obrigava a usar lentes de contato (pouco conhecidas pelos próprios colegas), chegou ao clube de Avellaneda com 17 anos e debutou aos 20 no time adulto, em 1943. Ficou por doze temporadas, jogando 308 partidas. Um dos maiores pontas do futebol argentino, substituiu à altura um ídolo racinguista (e da seleção) na posição, justamente o referido Chueco García (que viera em 1936 do Central e que se aposentara em 1944), e marcou 47 gols no clube. Pela Argentina, foi campeão das Copas América de 1945 e 1947, embora na reserva.
Simes, por sua vez, chegou à Academia em 1948, vindo do Huracán juntamente com outra lenda dos dois clubes, o meia-direita Norberto Tucho Méndez, o maior artilheiro das Copas América. Os três formariam com o ponta-direita Mario Boyé e o centroavante Rubén Bravo o quinteto ofensivo que primeiro encerrou jejum de 24 anos do Racing, em 1949, para então emendar no primeiro tricampeonato seguido do profissionalismo, em 1951. O que igualava os três títulos profissionais já obtidos pelo arquirrival Independiente e ainda fazia do Racing o maior campeão argentino até então, juntando conquistas amadoras e profissionais; ao fim de 1951, La Acadé dividia esse feito com o Boca, cada um com 12 títulos nesta soma.
Ainda no Huracán, Simes, conhecido como La Saeta (“A Flecha”), jogou com um iniciante Alfredo Di Stéfano, que também receberia ali o mesmo apelido. Para diferenciá-los, foi o do novato que teve de receber um “sobrenome”, se tornando então La Saeta Rubia (“A Flecha Loira”). No Racing, Simes marcou 106 vezes em 179 partidas. Apesar do faro goleador, a única camisa alviceleste que defendeu foi a do clube, não tendo chegado a jogar pela seleção. Seus tentos no Racing incluíram os 26 que lhe deram a artilharia do campeonato de 1949 e o primeiro gol do Cilindro, o estádio da equipe, erguido especialmente para os primeiros Pan-Americanos (de 1951). Foi o único de uma vitória em 1950 sobre o Vélez.
Se os anos 40 e 50 viram a dupla Simes e Sued e os 60 testemunharam o esplendor de Wehbe, os anos 70 viram o auge do Unión, muito por conta dos gols do baixinho (1,65 m) Fernando Husef Alí – ainda o maior artilheiro da equipe alvirrubra de Santa Fe, com 85 gols em 347 jogos. Naquela década, o Tatengue ficou a dois pontos do vice-campeonato em 1975, em um time que viu quatro peças (o técnico Juan Carlos Lorenzo, o ponta Heber Mastrángelo, o volante Rubén Suñé e o goleiro Hugo Gatti) dali a dois anos vencerem a Libertadores com o Boca; e outra se destacar na primeira Copa do Mundo ganha pela Argentina (Leopoldo Luque).
El Turco Alí permaneceu em Santa Fe, que mesmo relativamente desmanchado de tanta qualidade acima descrita, soube se reinventar por mais uns anos com outros remanescentes do timaço de 1975. O Unión, 4º colocado naquela ocasião, saltou para o bronze em 1977 (com direito a hat trick de Alí em um 5-0 sobre o campeão River) e ir ainda mais longe em 1979, quando só foi vice-campeão por conta do critérios dos gols fora de casa nas finais com o River. O artilheiro-mor do Tate seguiu até 1988 no estádio 25 de Abril. Naquele mesmo ano, outro Turco começava a florescer no futebol argentino: Antonio Mohamed, um dos precursores dos jogadores metrossexuais na Argentina e no mundo.
Mohamed já mereceu este outro Especial bem antes de vir ao Brasil treinar o Atlético Mineiro nesse 2022. O clube com o qual mais se identificou é o Huracán, do qual é assumidamente torcedor e onde começara em 1988 sua carreira adulta, após já aparecer nas seleções argentinas de base. Foram 41 gols em 101 partidas pelo time do bairro de Parque de los Patricios, onde foi a principal figura da conquista da B Nacional em 1990, marcando o gol do título frente ao Los Andes. Como técnico da Quema, também obteve acesso à elite, em 2007. Um dos setores do Tomás Adolfo Ducó, o estádio do clube, leva o nome de Farid Mohamed, o filho que Antonio perdeu em um acidente automobilístico em 2006. Além disso, já declarou publicamente a sua pretensão de retornar ali um dia como presidente.
Suas maiores provas de amor ao Globo, porém, talvez tenham vindo como adversário: em 1991, após ser reserva da Argentina campeã após 32 anos na Copa América, foi contratado pela Fiorentina e logo emprestado ao Boca. E como auriazul, naquele mesmo 1991, teria perdido propositalmente uma chance clara de gol frente à ex-equipe, em um lance que encurtou sua passagem pelos xeneizes. Vinte anos depois, como técnico do Independiente recém-campeão da Sul-Americana sobre o Goiás, encarou os quemeros na rodada final do Clausura 2011, alimentando rumores de que os favoreceria na luta contra o rebaixamento; ele não escondeu o desconforto, mas teve a honra limpa enquanto o Rojo goleava por um 5-1. Especialmente porque o resultado no fim das contas não rebaixou diretamente o Huracán, que pôde ter a sobrevida de um jogo-extra com o Gimnasia graças à derrota paralela dos platenses, concorrentes contra a degola.
Na sequência da carreira de técnico é que El Turco Mohamed começou a ficar conhecido no Brasil; primeiramente, como técnico do Tijuana que quase eliminou na Libertadores 2013 o futuro campeão Atlético. Mohamed virou desde os tempos de jogador um rei no futebol asteca, associando-se sobretudo ao Monterrey, onde pôde ser campeão em 2020. Em 2022, então, reencontrou o Atlético, com a incumbência de manter o gás do elenco duas vezes campeão nacional no ano anterior. Empolgou com a Supercopa do Brasil, apimentada pela rivalidade atleticana com o Flamengo, mas com a sequência ruim no Brasileirão virou vilão – imagem mitigada quando o antecessor Cuca, recontratado pera substituir Mohamed, saiu-se ainda pior. O Huracán, além de Simes e Mohamed, teve ao menos outros dois árabe-argentinos de certo relevo, os gêmeos Diego Graieb e Rodolfo Graieb.
Esses irmãos foram colegas primeiramente no Talleres em tempos de segunda divisão da La T, profissionalizados em 1994. Lateral-direito, Rodo teve mais reconhecimento que o atacante Diego, ao menos no Huracán, para onde foi em 1997. Diego ficou uma temporada a mais e até teve o gostinho de participar do título da segunda divisão de 1997-98 em cima do rival Belgrano, mas como reserva – a ponto de começar a temporada seguinte ainda na segundona, mas no Atlético Tucumán; em paralelo, Rodolfo era rebaixado como huracanense. Juntos novamente, os dois Graieb se envolveram no imediato título do Globo na Primera B de 1999-2000. Diego, novamente, permaneceu naquele cenário, por Los Andes, Platense e Gimnasia de Concepción del Uruguay, ao passo que Rodolfo continuou no Huracán, ainda que vivesse já em 2003 novo descenso. Ao menos, El Mellizo foi titularíssimo no primeiro título argentino do Lanús, no Apertura 2007.
Também há os argentinos que, sem relevo na terra natal, acabaram aceitando chamado da seleção da Palestina: Pablo Abdala, Ramón Naif (ambos de carreira desenvolvida sobretudo no futebol do Chile, país de ativa comunidade daquela região a ponto de fundar o clube Palestino) e Daniel Kabir Mustafá. Em 2021, a da Síria aproveitou Jalil Elías, do San Lorenzo.
Atualização em 02-10-2023: o técnico argentino Héctor Cúper, treinador da Síria, convocou dois árabe-argentinos para essa seleção: Ibrahim Hesar, do Belgrano, e Ezequiel Ham, do Independiente Rivadavia.
E também houve estrangeiros de origem árabe que souberam brilhar na Argentina, notadamente o goleirão colombiano Faryd Mondragón Alí, que chegou a ser o mais velho jogador das Copas do Mundo em 2014 – quase vinte anos depois de ser um dos pilares do Independiente campeão da Supercopa em pleno Maracanã, sobre um Flamengo centenário. Também teve certo destaque no Argentinos Jrs, seu trampolim ao Rojo. E, na via oposta, vale registrar casos dos jogadores argentinos apelidados de Turco sem maior gota de sangue árabe (ou túrquico mesmo). Como César Laraignée, zagueiro bastante técnico que teve o azar de viver o período do longo jejum do River entre 1957-75. Acabou fazendo carreira na França, terra de suas raízes. É tio materno de Juan Manuel Martínez, ex-Vélez e Corinthians.
Claudio García, que por sinal chegou a passar pelo “árabe” Vélez no fim dos anos 80, foi um folclórico ídolo de Huracán, Racing e breve colega de Mohamed na seleção de 1991. El Turco García recebeu a princípio a contragosto a alcunha, criada para zomba-lo quando pedia a colegas de várzea para deixarem a bola para ele – o “déjala, déjala” (a pronúncia é “dêrrala”) foi logo emendado com a abreviação “jala, jala” (“rála, rála”), no que soou como palavreado árabe aos leigos com quem estava jogando. A gracinha surgiu na hora e, diante do desgosto inicial do atacante (de passagem-relâmpago pelo Internacional em 1995), naturalmente pegou para sempre. Foi essa a versão dada por ele já em 2012, quando já estava mais do que grato ao apelido: admitiu que serviu de diferencial em um país cheio de Claudios, cheio de Garcías e cheio de Martínez, seu outro sobrenome.
Hugo Maradona, caçula de Diego, virou El Turco ainda antes de ser profissionalizado; no caso dele, pela fisionomia. Capitão e artilheiro da Argentina campeã sub-17 no Sul-Americano da categoria em 1985, foi inicialmente visto como um meia-atacante que poderia brilhar por méritos próprios. Mas, embora ficasse uma figura querida no mesmo Argentinos Jrs de Diego e até conseguisse carreira europeia (Ascoli, Rayo Vallecano), só conseguiu se desvencilhar um pouco da figura colossal do irmão ao rumar já nos anos 90 ao futebol japonês. Isso não impediu de radicar-se na mesma Nápoles tão ligada a El Diez, falecendo precocemente por lá em dezembro passado.
Ligações árabe-argentinas para além do campo
Para além do futebol, mas bastante relacionado a ele, o mais famoso árabe-argentino é o ex-presidente Carlos Saúl Menem, que inclusive precisou converter-se do islã ao catolicismo para poder assumir a presidência – onde logo manobrou para suavizar essa restrição constitucional. Em sua gestão, começou a ser construído o Centro Cultural Islâmico Rei Fahd. O nome da mesquita homenageia o mesmo monarca saudita que batizou o troféu-embrião da Copa das Confederações, vencida na Arábia Saudita pela Argentina na edição inaugural, em 1992. Três anos depois, a península arábica viu os garotos liderados por Sorín vencerem, justamente no Qatar, um Mundial sub-20 sobre o Brasil. Esses títulos, a presidência popstar de Menem e o auge de Mohamed, de Asad e dos Husaín fez o futebol argentino ser nos anos 90 arabizado como nunca.
A política menemista inclusive também repercutiu no Brasil, com a irresponsabilidade de igualar o dólar ao peso causando uma euforia de curto prazo a atrair à liga argentina diversos brasileiros, de Silas e Ricardo Rocha a gente anônima interessada em um salário dolarizado. Teria sido também Menem quem indicou aos sauditas o técnico Jorge Solari para em cima da hora treinar a seleção na Copa 1994, a primeira do país: o holandês Leo Beenhakker já havia classificado os estreantes para os EUA, o que não bastou para lhe manter no cargo, ocupado ainda pelo local Mohammed Al-Kharashy e pelo brasileiro Ivo Wortmann antes que o argentino (jogador na Copa de 1966) assumisse logo antes do Mundial. El Indio Solari havia sido vice argentino de 1987 com o Newell’s, campeão em 1989 com o Independiente e vinha de iniciar a ascensão de um “argentino” Tenerife em La Liga.
Depois de Solari (tio de Santiago Solari e sogro de Fernando Redondo, ambos ex-Real Madrid), o ex-atacante Gabriel Calderón viveu a situação inversa: classificou a Arábia Saudita para a Copa de 2006, mas perdeu o emprego pouco antes do torneio. Os sauditas tiveram depois disso mais dois técnicos argentinos, cada um revivendo o filme dos antecessores: Edgardo Bauza, após não vingar na própria Albiceleste, chegou no fim das eliminatórias asiáticas para 2018 a tempo de participar dos jogos que fizeram da Arábia Saudita a primeira a classificar-se para a Rússia. Mas quem terminou trabalhando no Mundial seria Juan Antonio Pizzi, argentino que defendera a seleção espanhola como jogador.
Argentina e Arábia Saudita já duelaram quatro vezes, com a Albiceleste invicta: 2-2 (em Adelaide) e 2-0 (em Canberra) em 1988, ambos pelo torneio do Bicentenário da Austrália; o 3-1 na decisão daquela Copa das Confederações de 1992 e um 0-0 amistoso em 2012, ambos em Riad. A capital saudita também serviu de palco para o único duelo contra o Iraque, um 4-0 amistoso em 2018. O Qatar levou um 3-0 amistoso na capital Doha em 2005 e um 2-0 em Porto Alegre pela Copa América 2019. Os Emirados Árabes foram enfrentados pela primeira vez no último amistoso pré-Copa dos hermanos, que golearam em Abu Dhabi por 5-0. Abrangendo a lista para o mundo etnicamente afro-árabe, houve três amistosos com o Marrocos (3-1 em Salta em 1994, 1-0 em Casablanca em 2004 e 1-0 em Tânger em 2019), um com a Líbia (3-1 em Trípoli, em 2003) e outros cada com a Argélia (4-3 no Camp Nou, em 2007) e Egito (2-0 no Cairo, em 2008); e um 2-1 sobre a Tunísia pela Copa das Confederações de 2005, em Colônia.
Mas curiosamente é a “renegada” Israel, de seleção cada vez mais aberta a nativos árabes – mesmo os muçulmanos -, o adversário das redondezas que reúne maior cartel de duelos com a Argentina. Todos foram amistosos: 1-1 em Jafa em 1973; vitórias argentinas em Tel Aviv por 7-2 em 1986, 2-1 em 1990 e 3-0 em 1994; e derrota de 2-1 em Jerusalém em 1998, na última vez que a superstição por uma repetição do título em 1986 foi reaproveitada. Ao menos no nível das seleções principais, não houve ainda encontros dos argentinos com Bahrein, Iêmen, Jordânia, Kuwait, Líbano, Omã, Palestina e Síria (nem com as nações afro-árabes das Comores, Djibouti, Mauritânia, Somália e Sudão). O Irã, por sua vez, não é etnicamente uma nação árabe, e sim essencialmente persa, apesar da semelhança no alfabeto e da ligação histórica e religiosa com os vizinhos do Oriente Médio frequentemente ensejarem apressadas conclusões equivocadas.
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