Supersemana – Brasileiros no Super: Domingos da Guia
O ano de 1934 terminava e mais uma vez o Boca Juniors faturava o campeonato argentino. Com um ataque formado por grandes jogadores como Varallo, Cherro e Cusatti, a equipe comandada por Mario Fortunato marcou naquele ano 101 gols. No entanto, sofreu 62. Para o técnico, aquele número era muito alto.
A dupla de zaga do Xeneize era composta pelos brasileiros Moisés e Bibi. Para Fortunato, era essencial que o time não tomasse mais tantos gols e, por isso, os dois brasileiros foram dispensados. Assim, o Boca iniciou a procura por zagueiros que dessem mais tranquilidade ao time. Logo após a dispensa dos zagueiros, o promissor Valussi foi contratado junto ao Chacarita, por indicação de Roberto Cherro, que apesar de ainda atuar como jogador, era uma espécie de braço-direito de Fortunato.
Desde os tempos mais remotos, era comum que times argentinos e uruguaios viessem ao Brasil para realizar algumas partidas de preparação para a temporada. Em uma dessas excursões, o Boca Juniors veio ao Brasil no começo de 1935. E obteve importantes vitórias, como um 4 x 0 no Botafogo e um 6 x 1 no São Cristóvão, então vice-campeão estadual. Mesmo assim, o treinador ainda não estava totalmente satisfeito com a defesa da equipe.
Novamente Cherro entrou em ação e indicou Domingos da Guia. O “Divino Mestre” havia atuado pelo Nacional do Uruguai nos últimos dois anos e encantava a todos pelo modo elegante com que jogava, ainda que tivesse somente 22 anos. Naquele ano Domingos jogava pelo Vasco e, logo após um empate com o Boca por 3 x 3, toda a comissão técnica ficou maravilhada com o que viu. E contratou Domingos para ser o companheiro de Valussi na zaga.
O zagueiro brasileiro estreou no time no primeiro jogo do campeonato de 1935, numa vitória do Boca por 2 x 1 contra o Vélez. E já na quinta rodada do torneio a equipe se encontraria com seu mais duro rival, o River Plate, no primeiro super-clássico da temporada. A equipe vinha de uma derrota por 1 x 0 para o Gimnasia La Plata.
A tarde de 21 de abril de 1935 estava ensolarada. O antigo estádio do Boca, de arquibancadas de madeira, recebia cada vez mais gente que queria ver o “fenômeno Boca”, a equipe que em quatro anos de profissionalismo já havia ganho dois títulos argentinos. O Boca vinha de uma série de três vitórias seguidas contra o River.
O jogo começou acelerado, com ataques de ambos os lados. Na primeira descida pela esquerda, o veloz ponta Pedro Lago tentou algo mas foi desarmado por Domingos. Depois, Zatelli levou perigo por duas vezes contra o gol do “Millo”. Aos cinco minutos de jogo, Cherro abriu o placar para o Boca.
Faltando três minutos para o fim do primeiro tempo, Domingos aparece na partida decisivamente. Depois de um lançamento de Minella, Moyano ganhou uma dividida com Valussi e saiu na cara de Yustrich. De repente, Domingos apareceu na frente do atacante e tomou-lhe a bola de forma limpa. Porém ao invés de dar um chute para a frente, como todo zagueiro costuma fazer, Domingos dominou a bola na área e saiu para o jogo tranquilamente. Foi o suficiente para que a torcida aplaudisse o jogador prolongadamente, até o final do primeiro tempo. Domingos timidamente retribuiu levantando seu braço. E o jogo terminou 1 x 0 para o Boca.
Ainda naquele ano Domingos também foi titular no outro super-clássico, realizado em 1º de setembro no antigo estádio do River, localizado no bairro de Palermo. Num jogo muito equilibrado, as equipes empataram por 1 x 1. E o River mais uma terminava o ano sem saber o que era ganhar de seu maior rival. Em 1935, o Boca se sagraria bi-campeão argentino e o número de gols sofridos caiu de 62 para 29. Com 23 anos, Domingos era campeão na Argentina e no Uruguai. Mas ainda não era no seu país de origem.
Em 19 de abril de 1936, quase um ano depois da estreia de Domingos em super-clássicos, novamente os dois gigantes se enfrentariam no estádio do Boca. Havia vários tabus em jogo naquela tarde. O River estava há dois anos sem vencer o grande rival, nunca tinha vencido o adversário no seu estádio desde o início do profissionalismo e estava há 21 anos sem ganhar do Boca fora de casa.
Se o Boca tinha Varallo, Domingos, Cherro e Valussi, o River tinha Minella, Bernabé Ferreyra, Peucelle e Moreno. E em mais um clássico de arrepiar, o River vence o Boca por 3 x 2, com grandes atuações da Fiera Ferreyra e de Carlos Peucelle. O “Millo” chegou a vencer o jogo por 3 x 0 ainda no primeiro tempo.
Nesse jogo Domingos não foi bem e poderia ter contribuído para um placar mais elástico. No final do primeiro tempo Ferreyra apareceu sozinho na frente de Yustrich. No momento em que ia concluir foi empurrado por Domingos. Porém o árbitro Tomás Galli não viu o pênalti e mandou Ferreyra se levantar, para indignação dos jogadores do River. Um erro que no entanto não tirou o brilho da grande vitória do River no campo do maior rival.
Menos de um mês após essa derrota, Domingos se envolveria numa confusão num jogo contra o Atlanta, que termina empatado por 2 x 2. O gol de empate do Atlanta foi marcado quando faltavam dois minutos para o término, o que deixou Domingos enfurecido. O zagueiro agrediu o árbitro da partida e depois pegou nove meses de suspensão. Com isso, obteve uma autorização do Boca para voltar ao Brasil e assim defender o Flamengo.
Finda a suspensão, Domingos ainda voltou à Argentina e jogou mais um super-clássico, no dia 8 de agosto de 1937.
O Boca venceu a partida por 2 x 1, mas Domingos já não estava mais satisfeito com a Argentina. Assim, rescindiu seu contrato com o time xeneize e voltou ao Brasil para jogar novamente pelo Flamengo, onde atuaria até 1943. No clube da Gávea ganhou os campeonatos estaduais de 1939, 1942 e 1943. Tal feito conferiu a Domingos o status de ser o único jogador brasileiro a sagrar-se campeão atuando por clubes da Argentina, do Brasil e do Uruguai. “O maior (jogador brasileiro) foi Domingos, completo. Campeão lá, aqui e na Argentina”, elogiou-lhe Obdulio Varela em 1972 em entrevista à Placar em Montevidéu.
No ano seguinte Domingos se transferiu para o Corinthians, pelo qual enfrentou outras vezes o River, segundo Alfredo Di Stéfano em depoimento reproduzido no livro oficial do centenário do próprio River: “sempre me lembro do dia em que joguei contra Domingos da Guia. Era um cavalheiraço. Mas naquele jogou deu uma patadona fenomenal em Loustau e se armou um bate-boca bárbaro. Todos nos amontoamos e el negro tirou o que tinha guardado dentro há vários anos: ‘nunca vou perdoar este senhor Loustau que ridicularizou Domingos…’. Ficamos olhando-o e nesse momento me veio à memória um jogo de 1945, no campo do River, quando Félix (Loustau) foi reluzir todo o seu repertório e fez coisas de cinema. Eu estava na tribuna e saltava de felicidade. No Domingos, para ser sincero, deu um baile incrível… Essas eram questões de honra que todos respeitávamos muitíssimo nesses tempos”.
Ficou no Corinthians até fevereiro de 1948, sem conquistar títulos no clube paulista. À época com 37 anos, chegou ao Bangu para encerrar sua gloriosa carreira. E seu último jogo como jogador foi uma derrota para o Flamengo por 4 x 2, em 12 de dezembro do mesmo ano.
Domingos da Guia fez 25 jogos pela seleção brasileira entre 1931 e 1946. Disputou a Copa do Mundo de 1938, na França, quando o Brasil fez uma boa campanha, terminando em terceiro lugar. Faleceu aos 87 anos na tarde em 18 de maio de 2000, no Rio de Janeiro, vítima de um acidente vascular cerebral. A passagem breve pelo Boca não o impediu de ser considerado um dos cem maiores ídolos do clube, segundo o livro oficial do centenário xeneize, de 2005, e edição temática da El Gráfico (a principal revista esportiva argentina, cuja imagem que abre a matéria veio de capa sua) deste ano.