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Os verdadeiros clássicos argentinos

Para alguns, o próximo fim de semana será marcado pelos clássicos argentinos. Mas isso não é totalmente verdade. Por mais que sejam partidas envolvendo dois clubes de muita história e tradição, Boca-Independiente e River-Racing não são clássicos. Muito menos Vélez-Estudiantes. O principal clássico genuíno da rodada é San Lorenzo-Huracán.

Para os brasileiros, é um pouco difícil compreender isso tudo. Afinal, para nós, clássico é um jogo entre dois clubes grandes da mesma cidade. Se considerarmos Avellaneda (cidade no entorno da capital que é a casa de Racing e Independiente) como sendo Buenos Aires, os confrontos citados seriam típicos clássicos. Boca Juniors, River Plate, Independiente e Racing são clubes grandes, com títulos de Libertadores e de Mundial Interclubes, além de imensa torcida no país inteiro antes mesmo de acumularem esses troféus internacionais.

Já o San Lorenzo é o único dos cinco grandes que vai enfrentar um clube pequeno no fim de semana. Como justamente esse jogo, que envolve um clube grande, mas que nunca venceu uma Libertadores, e um humilde clube portenho, pode ser clássico, enquanto os duelos de gigantes não são?

A questão é que, na Argentina, o conceito de clássico é totalmente diferente. Para entender isso, é essencial saber que os clubes argentinos, principalmente os portenhos, são muito mais do que agremiações esportivas. São representantes do seu pedaço, do seu bairro. Na Grande Buenos Aires, o bairro é parte essencial da identidade das pessoas. Cada um tem a sua história, sua arquitetura, seu perfil socioeconômico, e uma série de traços característicos. Todos os portenhos têm muito orgulho de seu bairro. Isso explica o incontável número de clubes na capital federal e municípios que a rodeiam no chamado conurbano. Cada um representa o seu bairro.

Brasileiros frequentemente interpretam a fidelidade dos portenhos a esses pequenos clubes como sinal de fanatismo. Mas a coisa não é tão simples. Na verdade, esses clubes são muito importantes para os moradores do bairro. Lhes dão identidade. Ir para a cancha vibrar pelo clube é mostrar a força do bairro em que se vive. Isso vale para todos os clubes portenhos. Cada clube está profundamente enraizado em seu bairro, e é o orgulho de seus moradores.

Muitos brasileiros se maravilham com a paixão dos moradores de La Boca pelo clube xeneize. Mas, na verdade, isso não é específico por lá: qualquer clube portenho é alvo da mesmíssima paixão por parte dos moradores de seu bairro. O que é diferente no Boca é exatamente o fato de ter saído dos limites do bairro e se transformado numa paixão nacional.

E o que isso tudo tem a ver com os clássicos? Absolutamente tudo. A paixão pelo clube do bairro se traduz em ódio pelo clube do bairro rival. O clássico argentino não é necessariamente uma partida entre dois clubes grandes, mas um jogo entre clubes de bairros vizinhos ou entre vizinhos de um mesmo bairro, independente de serem gigantes ou pequenos. Um encontro entre dois pequenos clubes de cercanias próximas, como San Telmo-Dock Sud, é um clássico. Mas um confronto entre Boca Juniors-Independiente, dois gigantes mundiais com 13 títulos somados de Libertadores, não é – rigorosamente falando, ao menos.

Ao contrário do que os brasileiros imaginam, o embate Boca-River não é um clássico por colocar em campo os dois maiores clubes do país. A rivalidade nasceu pelo fato de os clubes serem vizinhos em sua origem, com ambos surgindo em La Boca, ao sul da capital. Posteriormente, o River se mudou para a região oposta da cidade (ao norte, inicialmente para um estádio na Recoleta nos anos 20 e, desde os anos 30, para a zona de Belgrano e Núñez), mas na origem eram muito próximos. O mesmo vale para Independiente-Racing, com estádios em quarteirões colados. Essas partidas são as rivalidades de vizinhança que envolvem os times mais famosos do país.

E San Lorenzo e Huracán são vizinhos. O Ciclón é de Boedo, e o Globo se situa em Parque Patricios, bairros adjacentes um ao outro, situados na empobrecida zona sul de Buenos Aires – os sanlorencistas chegaram a ser apelidados de Camboyanos nos anos 80 pelo estoicismo de seus jogadores equiparado (com exagero, claro) ao daquele sofrido povo asiático: mesmo atravessando a década sem estádio próprio e com rotina de atrasos salariais, os azulgranas puderam chegar em 1983 ao vice-campeonato argentino (um ano após saírem de uma passagem pela segunda divisão ) e em 1988 a uma semifinal de Libertadores.

Já os torcedores huracanenses têm o apelido de quemeros e seu bairro de Parque Patricios, de La Quema, por aquela zona se caracterizar no passado por abrigar fornos crematórios para eliminação do lixo da capital federal – esses apelidos surgiram naturalmente como xingamentos dos rivais e com o tempo foram abraçados orgulhosamente pelos alvos. Esses dois bairros operários possuem mesmo identidade bem definida, e seus orgulhosos moradores amam odiar seus vizinhos. E os confrontos entre San Lorenzo e Huracán expressam isso.

Duas pequenas histórias podem ilustrar como a questão do bairro é essencial na definição dos clássicos argentinos. Ambas sobre o San Lorenzo. Em 1993 o Ciclón inaugurou seu novo e moderno estádio, o Nuevo Gasómetro. O antigo estádio do Gasómetro foi vendido em 1979 para a rede de supermercados Carrefour, que lá construiu uma imensa loja enquanto o clube, como já dito, atravessou uma década inteira sem casa própria – alugando muitas vezes o campo do próprio Huracán naqueles tempos. O novo estádio não fica distante do antigo; a distância pode ser percorrida em uma caminhada não muito longa.

Mas o novo estádio, além de se situar nos arredores de uma favela e assim carregar toda uma má fama de perigo (injusta ou não) nos entornos, tem um “pecado” mortal: fica em outro bairro. Bajo Flores é próximo ao bairro de Boedo, onde se localizava o antigo. Mas os rivais não perdoaram. O clube passou a ser visto como um traidor de seu bairro, o que significa perder completamente sua identidade. Até hoje, a torcida do Huracán tem predileção especial por representar o clássico opondo o símbolo do seu clube ao logotipo do supermercado francês (que, como se não bastasse, por coincidência tem as mesmas cores sanlorencistas) que ocupa a área do antigo estádio do rival.

A outra história ocorreu em fins de 2008, quando Boca Juniors, San Lorenzo e Tigre terminaram o Apertura empatados em pontos e disputaram um triangular de desempate. O minitorneio se abriu com um confronto entre xeneizes e azulgranas. Quando alguém se referiu à partida como “clássico”, Riquelme não teve dúvidas em dizer: “O clássico do San Lorenzo é com o Huracán”.

A declaração gerou polêmica entre os torcedores do Ciclón. Pois, dos cinco grandes, o San Lorenzo é o único cujo clássico é contra um pequeno. Chamar de clássico o jogo contra o Boca, contra quem os sanlorencistas são tradicionalmente um dos poucos times argentinos a ter retrospecto favorável, significa para eles reafirmar seu status de grande. Pareceu aos cuervos que Riquelme rebaixava o clube com sua declaração.

Mas não foi o que o craque quis dizer. Riquelme apenas reafirmava uma verdade que todos os portenhos conhecem. Na Argentina, clássico é questão de vizinhança. É o espaço em que os moradores afirmam o orgulho de pertencerem ao que consideram o melhor bairro do mundo. Simplesmente isso.

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

20 thoughts on “Os verdadeiros clássicos argentinos

  • Mateus Peres

    Perfeito o texto! parabéns gurizada do site, é isso ai mesmo…

    “…vamos los Quemeros que tenes que ganar, cumplimos 100 años en el mismo lugar…”

    VAMOS GLOBITO! Custe lo que custe, el domingo tenemos que ganar!

  • cesar

    Vamos Globooo !!! Huracan el domingo cueste lo que cueste tenemos que ganar !!!

  • Gustavo Alfaro

    Muito Bom o Texto. Sou fissurado pelo futebol argentino, mais especificamente pela paixão do povo argentino. Sempre quis saber o motivo desse montão do times em Buenos Aires. Parabéns!!

  • Ernesto

    Cara parabéns! Estou gostando muito dos artigos ‘Especiais’.
    Você consegue pegar o jeito argentino muito bem (Eu sou argentino).

    Outro exemplo de clássico díspar na argentina é Estudiantes – Gimnasia. Os dois times são de La Plata.

    Estudiantes: 1 Intercontinental, 4 Libertadores, 5 (acho) Torneios Argentinos.
    Gimnasia: 1 torneio argentino amador, 1 Copa Centenario (copa mata mata jogada no centenario da AFA e declarada oficial, mas mesmo assim um torneio menor).

    Mas em torcida e paixão vão iguais pelo menos dentro de La Plata, fora de La Plata Estudiantes tiene muitos mais torcedores do que Gimnasia.

    A definição é essa que você falou, mas a mídia faz tempo que chama de clássicos os encontros entre os 5 times grandes. E de super clássico o River-Boca. Mas isso é coisa da mídia.

  • Tiago Melo

    Muito obrigado pessoal. A gente se mata para voces gostarem mesmo!

    Ernesto: muito bom saber que alguém que conhece a história de perto aprova o texto. Muito importante.

    Gustavo: Que bom que o texto serviu para que voce conheça algo novo sobre o futebol argentino. Esperamos continuar ajudando a entender melhor as coisas de lá.

    César e Mateus: noto que os quemeros tiveram uma identificação especial com o texto. Não é a toa, meus amigos. O autor do texto também é um de voces!

  • João Henrique

    Parabéns pela matéria….
    Pretendo ir ao super classico no domigno 07/11, e queria saber se vcs sabem me dizer a respeito do comportamento das torcidas, principalmente devido ao fato de ser brasileiro e tal….
    sds

  • Tiago Melo

    Quanto a ser brasileiro não há nenhuma razão para se preocupar. A tal raiva que os argentinos sentem pelos brasileiros é só uma lenda. Há a rivalidade futebolistica mas fica por aí. Pode ficar tranquilo, é só tomar os mesmos cuidados que voce tomaria em qualquer estádio brasileiro. Tenha certeza que todo mundo que escreve aqui está morrendo de inveja de voce.

  • Ernesto

    Ai João, acho que como brasileiro não vai ter problema. Mas na comparativa acho o futebol argentino bem mais violento que o brasileiro. Quando eu ia ‘a la cancha’, não levava relógio, celular, nada de valor, nem carteira (levava o dinheiro solto no bolso). Eu recomendo você vestir simples.

    Também depende se você ‘a la popular’ ou ‘a la platea’.

    Bom Super clássico!
    E boas ferias na Argentina.

  • Júnior

    Muito boa matéria. Adoro futebol argentino e é dificil achar matérias sobre a história de lá e tudo. Acompanho o site há tempos mas já tinha um tempinho que não acessava. Pra minha surpresa tá melhor do que já era. Parabéns pelo trabalho de vocês!

    Toco y me voy.

  • claudio

    Huracan e Avaí Para todo el mundo !!!!

  • Roberto

    Tiago: muy linda la nota pero Huracán no es un club pequeño. Todo lo contrario, es uno de los 6 grandes de Argentina.
    Saludos.

  • Para que sepan un poco màs de nuestra gran Historia, HURACAN es el club màs porteño del mundo y representa la autentica idiozincracia argentina, HURACAN ES COMO EL TANGO. Boca es puro marketing para los turistas.

  • el turco de turdera

    vamos globooooooooo !!!!!!!!!
    el dia que muera te alentare desde el cielo !!!!!!!!!

  • Socdefomento

    La sociedad de fomento de parque poquinhos no puede ser clásico de NADIE. Tu clásico es piranha. Son 8.

  • mariano

    HURACAN ES EL SEXTO GRANDE DE LA ARGENTINA, por su historia y por sus figuras a lo largo de todo el futbol desde sus comienzos, hasta tiene un equipo en inglaterra, el huracan london fc. HURACAN ES MI VIDAAAAAAAAAA

  • Eu acredito que a paixão dos torcedores do Boca e do River, guardadas as devidas proporções, é a “mais brasileira”, a “menos argentina” entre os clubes de futebol do país vizinho.

    Deixe-me explicar o porquê: justamente por serem os maiores clubes, aqueles que têm as maiores torcidas, torcidas que ultrapassam, e muito, os limites do bairro, da cidade, da região metropolitana, da província, suas demonstrações de paixão e apego são as mais conhecidas e similares às nossas. Paixões que não necessariamente tem a ver (só) com a localização, com o berço do clube. Um torcedor do Boca de Corrientes ou um do River de Jujuy (e existem, sim) fatalmente terão uma ligação com seus clubes muito diferente da de um torcedor do Nueva Chicago de Mataderos, por exemplo.

    A relação de muitos torcedores desses dois maiores clubes com seu time é, em muitos casos, um pouco mais familiar ao modo brasileiro de devoção… torcedores que não são oriundos da mesma localidade, muitas vezes nem da mesma cidade ou estado de seu time escolhido. Aliás, “escolhido” é a palavra. Aqui, muitas vezes, o time, mesmo que com uma certa influência familiar, de amizades, de afinidades é uma escolha pessoal. Lá, muitas vezes, é parte de sua herança cultural local. Boca e River têm algo como 30% e 25% da torcida nacional, respectivamente, segundo algumas pesquisas. Fatalmente, é impossível que todo esse contingente de pessoas habite apenas os bairros de origem desses clubes. É muita gente. Assim, extrapolam e muito a tradicional base de apoio típica dos clubes, os ligados à sua localidade, por exemplo, Banfield, All Boys, Vélez, Tigre, Almagro, Platense, Dock Sud, Sportivo Italiano, Deportivo Arménio, Nueva Chicago e tantos outros.

    E, assim, acredito que, sucessivamente, dos grandes pros pequenos, nesse sentido decrescente, vc verá um crescendo de paixão nesses moldes, o enraizamento local, a paixão pelo bairro, seu locus, tudo muito ligado à própria história dessa grande urbe, Buenos Aires e sua área metropolitana. Encontraremos os exemplos mais “puros” dessa paixão argentina pelo futebol, justamente, nos clubes “menores”, os mais ligados à sua base local de apoio. Nos 3 maiores clubes depois de Boca e River, ou seja, Racing, Independiente e San Lorenzo, acredito que seja possível observarmos, também, uma mescla dessa paixão que extrapola os limites de seu bairro de origem, assim como com Boca e River (pois esses 3 clubes também possuem grandes torcidas, algo como, mais ou menos, em torno de 7% dos torcedores argentinos, cada um deles, aproximadamente) a uma base de apoio local, muito, muito ligada a el barrio.

    Não sei se me fiz claro!

    Um abraço a todos!

  • De qualquer maneira, é apenas uma teoria, uma observação em cima de fatos que percebo, coisas que li… uma teorização ;)

    Abração a todos!!!

  • Emiliano Ponce

    Tiago de Melo Gomes: Esta muito bem a sua nota, a menos que algo está errado. Huracán é considerado o maior do futebol argentino sexta por muitos meios de comunicação nacionais. Na Argentina não é considerado de grandes equipes por suas conquistas sozinho, já que estes são muitas vezes devido à sua situação económica e alguma sorte, excluindo os casos de corrupção. No entanto, apesar da sua má situação atual, o Huracán tem um dos seguidores mais retorcidas e apaixonado do nosso futebol. Por esta razão, se você perguntar a algum Cuervo (tocedor de São Lourenço), que é o seu rival clássico, sem dúvida, você vai muito orguyo cotestar é Huracán. Abraço de gol..

  • Tiago de Melo Gomes

    Caro Emiliano:

    Não acho que seja correto dizer que a caracterização do Huracán como pequeno está “errada”. A questão é polêmica. O Huracán se considera o sexto grande e há quem concorde. Assim como há quem creia que são apenas 5 grandes, ou que o Vélez ou outro clube seja o sexto grande. É uma questão totalmente em aberto, na qual não há consenso. Então fica impossível, a meu ver, dizer que alguém está certo ou errado nessa questão.
    E para que fique claro, sou torcedor do Huracán. Para que entenda que sei muito bem da discussão sobre o clube ser o sexto grande.

  • Pingback: All Boys – Argentinos Jrs: Um clássico desconhecido

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