“Medo, eu? Vocês se esquecem que eu enfrentei muitas vezes Pedernera… e, como ele, não há ninguém”. O elogio é do mito uruguaio Obdulio Varela ao ser indagado sobre a decisão com o Brasil na Copa de 1950. “O melhor jogador que vi foi Pedernera”, já disse Alfredo Di Stéfano, que no River era reserva do homem cujo apropriado sobrenome refere-se à rocha capaz de gerar fogo mesmo molhada, usada em espingardas e isqueiros antigos. O River tinha um equipaço nos anos 40 chamado La Máquina, cujo idealizador é apontado como sendo o técnico Carlos Peucelle, que retrucou: “eu não fiz nada, fez Doña Rosa”, referindo-se à mãe do maestro Adolfo Pedernera. Ele faleceu há exatos vinte anos.
Veio ao mundo em Avellaneda e de início era fã do Racing, onde seu irmão Raúl jogava. “Éramos uma família muito humilde, muito carente, mas também muito trabalhadora. Minha mãe e meu pai (…) tiveram dez filhos, cinco varões e cinco mulheres, e eu era o menor. E o mais mimado”. No Racing, Adolfo foi no máximo gandula. Na adolescência, a família se mudou para o bairro portenho de Barracas, vizinho ao bairro de Parque de los Patricios, onde está sediado o Huracán. Adolfo também tentou lá e igualmente não foi chamado. Estava decidido a não insistir no sonho, mas foi convencido a tentar o River. Os testes foram feitos no campo do Sportivo Palermo. “Me levaram a uma confeitaria, me convidaram com um sanduíche de salame e queijo, e Félix Roldán me comunicou que na quarta fosse à AFA para me inscrever. Eu nem sequer sabia onde ficava a AFA…”.
“Que significou para mim chegar ao River? Não se pode explicar com palavras. Era como tocar o céu com as mãos. Observe como eram as coisas naqueles anos que um se deslumbrava com a Banda Roja. Calça de veludo, camiseta de seda, meias de lã… River era um luxo. Por alguma razão eram Los Millonarios“. A estreia profissional viria ainda com 17 anos incompletos, contra o Ferro Carril Oeste, na 17ª rodada da campanha morna de 1935, dando três chapéus seguidos no marcador José Della Torre, que havia ido à Copa de 1930. “Fui ao banco e era tanta grana que pedi que me pagassem em notas pequenas. (…) Cheguei a minha casa, abracei minha mãezinha e comecei a voar os bilhetes pelo ar. Caíram lágrimas bárbaras na minha velha. E em mim também”, relatou sobre o primeiro salário.
Ainda adolescente, se firmou na titularidade do River em 1936, e veio o primeiro título. Foi um ano em que a AFA decidiu criar, pela primeira vez, dois campeonatos. O River venceu o segundo e jogou contra o campeão do primeiro, o San Lorenzo, um tira-teima para definir quem pegaria o campeão uruguaio. Pedernera marcou na vitória que serviu também para fazer do River o único campeão moral do ano – e, por muito tempo, o único oficial também, até a AFA esclarecer em 2013 que 1936 teve mesmo dois campeões. O ano de 1937 voltou a ter um só campeonato e o River foi muito bem. Conseguiu seu primeiro bi seguido após uma campanha de 85% de aproveitamento, com 106 gols e um segundo turno impressionante: 31 dos 34 pontos ganhos, vencendo os oito jogos que teve como visitante. O recorde de aproveitamento no profissionalismo é do Independiente de 1967 (treinado pelo brasileiro Osvaldo Brandão: clique aqui), que conseguiu 87% mas em um certame de turno único.
A última rodada de 1937 foi especial: foi a despedida do estádio no cruzamento das avenidas Alvear e Tagle, o primeiro campo do River na fina zona norte portenha: 6-1 no San Lorenzo, com Pedernera fazendo o último. Mas, embora sempre candidato, o clube não foi páreo nos anos seguintes ao fantástico Independiente do trio Antonio Sastre, Arsenio Erico e Vicente de la Mata. O que não impediu a estreia de Pedernera pela seleção, em 1940, marcando gol (3-1 no Paraguai) – no início de 1941, venceu a Copa América. O River viraria La Máquina a partir dali e é unanimidade que Pedernera foi o responsável.
Na época, havia cinco postos de ataque: as duas pontas, as duas meias e o centroavante. Pedernera, que começou a carreira como ponta-direita, conseguiria o feito de ser usado (e bem) na seleção em todos eles. Ele já havia passado à ponta-esquerda quando Carlos Peucelle, ainda jogando, convenceu o técnico Renato Cesarini a deslocar o garoto para centroavante. A vaga era de Roberto D’Alessandro, sem parentesco com o D’Ale do Internacional: “com o Cabezón D’Alessandro no time, todos têm que jogar para ele. Adolfo, ao invés, vai fazer todos jogarem”. A mudança ocorreu na décima rodada e o Independiente foi batido por 2-1 com gol de Pedernera, mas ele não se saiu tão bem como a estatística sugere. Voltou à ponta-esquerda e foi só na segunda chance que se firmou. Novamente contra o Independiente, já pelo segundo turno: 4-0 dentro de Avellaneda com três gols dele.
Outro ambidestro, Aristóbulo Deambrossi, passou da ponta-direita à esquerda, abrindo vaga para Juan Carlos Muñoz ficar com a ponta-direita. Ángel Labruna e José Manuel Moreno ocupavam as meias. Foi essa a primeira versão de La Máquina, ao menos quando a expressão foi inaugurada, em reportagem da revista El Gráfico sobre um 6-2 no Chacarita, já pelo campeonato de 1942. Pedernera marcou duas vezes nesse jogo. A linha ofensiva mais célebre do futebol argentino também viria naquele ano, quando Deambrossi permitiu que seu reserva, para poder ganhar uns trocados, fosse usado nos últimos jogos, com a taça já assegurada: Félix Loustau. “Mas olho aberto que La Máquina não foi só o ataque: foi todo o quadro. A defesa nos alimentava de uma forma excelente”, ressaltou Pedernera. Falamos ontem mesmo de um dos homens dessa retaguarda, Néstor Rossi (clique aqui).
Na Máquina, Muñoz ficava na extrema ponta. Loustau, com mais fôlego, recuava junto com Moreno para serem municiados pelos volantes. Moreno e Pedernera ditavam o ritmo, com Pedernera sendo o estrategista para Labruna, que enfrentava os beques, ser o martelo: usava a posição centralizada menos para fazer gols e mais para habilitar Labruna ou mesmo o incansável Moreno, um fenômeno físico para quem bebia tanto vinho e acordava tão tarde após varar as noites dançando tanto tango. Por isso e por tantas mudanças de posto, o maestro tem menos de meio gol por jogo no River, mas ainda assim com 131 em 287 jogos. Embalado pela mudança, o River foi bi em 1941 e em 1942, com saborosos Superclásicos: 1941 rendeu a maior goleada sobre o Boca, 5-1 com Pedernera deixando o seu.
Mas o que rendeu título foi o de 1942. O River perdia por 2-0 mas seu maestro marcou já no segundo tempo os dois gols do empate, aos 2 e aos 36 – àquela altura, os millonarios estavam com dez em campo por um objeto das furiosas arquibancadas fazer sangrar o beque Norberto Yácono. Afinal, estavam na Bombonera, que pela primeira vez viu volta olímpica rival. Mas a mesma plateia, ao fim, aplaudiu. A geração argentina da época, contudo, era dourada. Pedernera, na Copa América de 1942, foi meia-direita pois o centroavante era Herminio Masantonio, maior artilheiro do Huracán e ainda dono da melhor média de gols pela seleção dentre os que jogaram mais de dez vezes por ela (21 em 19 jogos).
Já nos anos seguintes, o concorrente foi o dono da segunda melhor média: René Pontoni (19 em 19), do San Lorenzo e ídolo de infância do Papa Francisco – veja aqui. Por isso os 7 gols de Pedernera pela Argentina vieram em 21 jogos. Mas 5 deles vieram nos 8 jogos que realizou como centroavante, posto que enfim ocupou no título da Copa América de 1946, que veio já nos fins da Máquina: aquele quinteto jogou junto pela última vez naquele ano. Na época, Di Stéfano só havia somado um jogo pelo River, e como ponta (substituindo o lesionado Muñoz), pois não tinha como tirar Pedernera do posto de centroavante. Assim, foi emprestado ao Huracán e só retornou após o maestro deixar o River, em 1947, vendido por uma cifra recorde de 140 mil pesos ao Atlanta.
O nanico Atlanta, clube da comunidade judaica, visava formar um grande time em busca do título, que desde 1930 vinha sempre ficando entre grandes (Boca, River, Independiente e San Lorenzo; ainda faltava o Racing). No início, atraiu multidões para seu porte e seu duelo com o Huracán ainda é o jogo doméstico de maior público sem envolver os cinco grandes. Mas o projeto naufragou e o clube acabou rebaixado ao perder justo para o River na última rodada, mesmo com os jogadores oponentes (já campeões) se poupando para não desonrarem o amigo do outro lado. Falamos aqui.
O Huracán, onde Di Stéfano brilhara em 1946, contratou o maestro em 1948 para repor a lacuna deixada pelo fã. Parou de jogar por lá em 1955; após três rodadas, retrucou insulto do presidente, que o achara lento, afirmando que o dirigente não tinha como critica-lo se não foi ver o time atuar. Ainda assim, quando foi treinar o Nacional de Montevidéu, pouco depois, foi implorado pelos uruguaios para que parasse de dirigi-los e fosse jogar junto deles. Mas resolveu cumprir a palavra de que havia parado. Não deixou tantos rastros no Huracán pois entre 1949 e 1954 esteve no Eldorado Colombiano (entenda clicando aqui). 1948 foi o ano da greve de jogadores, que, não atendidos, rumaram em massa para lá. O Millonarios de Bogotá levou ao melhor: se equipou com Néstor Rossi, Di Stéfano e Pedernera, dentre outros, e foi o maior papão de títulos do Eldorado, tolerado pelos vizinhos em um acordo que previa após 1954 a devolução dos jogadores aos clubes de origem.
Se Di Stéfano foi o nome mais conhecido, o que ficou de mais apelo foi o velho maestro, ainda mais ídolo por lá do que em casa. Eduardo Galeano relembrou em seu Futebol ao Sol e Sombra que dentre os argentinos que puderam ver in loco o Ballet Azul do Millonarios estava o jovem Che Guevara, que treinava um time na Amazônia colombiana e ao elogiar um comandado o apelidou de Pedernerita. Em 1991, um livro sobre os grandes momentos do futebol cafetero foi nomeado Colombia Gol. De Pedernera a Maturana – Francisco Maturana era o técnico da vitoriosa geração dos anos 90, que após ganhar de 5-0 da Argentina em Buenos Aires em 1993 foi “acusada” de parricídio pelos jornais colombianos.
Parte da idolatria deveu-se também à carreira de técnico. Pedernera pôs a Colômbia pela primeira vez em uma Copa, em 1962, com um honroso 4-4 contra a União Soviética do lendário Lev Yashin na campanha. No mesmo ano, de volta à Argentina, treinou o Gimnasia LP que lutou pelo título até as últimas rodadas. Acabou indo, heresia, treinar o Boca, pelo qual foi bicampeão em cima do River, em 1964-65. Quando a Argentina, a um mês da Copa de 1966, ficou sem treinador, o Boca ofereceu seu staff e Pedernera chegou a dirigir um treino, mas a AFA optou em contratar Juan Carlos Lorenzo.
Pedernera jamais pôde disputar uma Copa pela Argentina. Foi impedido pela Segunda Guerra como jogador. Como treinador, além da recusa da AFA em 1966, também fracassou nas eliminatórias à Copa de 1970. Acabou se focando em treinar os juvenis do River, nos moldes de seu mestre Carlos Peucelle, por vezes assumindo interinamente – uma dessas vezes ocorreu em 1985, entre a desastrosa passagem de Luis Cubilla e a vitoriosa de Héctor Veira, que venceria as primeiras Libertadores e Mundial do clube após pegar um time deixado pronto pelo maestro. Entre os últimos jovens que ele poliu, o lateral Héctor Enrique, titular da Argentina campeã de 1986 (deu o passe para Maradona iniciar o gol que driblou meia Inglaterra: “me salvou a vida Adolfo”, relatou ano passado), e Claudio Caniggia (“venha ver um garoto da sexta categoria júnior, que é muito bom”, indicou a Héctor Veira).
Pedernera trabalhou nas categorias de base do River até um ataque cardíaco fulmina-lo naquele 12 de maio de 1995. Transmitia paz mas não escondia uma amargura: repetidas operações de joelho não lhe permitiam “nem acariciar” a bola, segundo o próprio. Mas o que lhe deixava corado era algo ainda mais repetido, a alcunha de maestro: “os maestros estão nas escolas e ganham muito menos dinheiro”. Mesmo sem jamais exibir suas jogadas em Copas, sua morte foi lembrada hoje em matéria de destaque no site da FIFA. O reconhecimento pela entidade sobre o “parte Cruijff, parte Messi” está neste link.
Com este especial, finalizamos matérias sobre aquele quinteto de La Máquina. Clique nos nomes para acessar os que publicamos sobre Labruna, Moreno, Muñoz e Loustau.
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