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Juan Hohberg, o argentino que quase eliminou a Hungria da Copa de 1954

Originalmente publicado em 30 de abril de 2016, no aniversário de 20 anos do falecimento do personagem

Em 29 de abril de 2016, a seleção peruana convocou pela primeira vez Alejandro Hohberg, que, pelo clube local César Vallejo, havia assustado o São Paulo na pré-Libertadores daquele ano. O meia, de fenótipo mestiço já mais incaico do que germânico, até foi à Copa América Centenário, embora não se firmasse a ponto de ir ao Mundial da Rússia. Ainda assim, aquela convocação foi simbólica por um lado: justamente no dia seguinte, fez-se 20 anos da perda de seu avô, Juan Eduardo Hohberg Roca, que fizera o sobrenome consagrar-se nas histórias tanto da Libertadores como das Copas do Mundo – torneio este no qual quase foi mártir, em um dos episódios mais emocionantes de uma seleção tão historicamente valente como a do Uruguai. Sim, este argentino de origem alemã realmente rodou a América do Sul. Que chorou sua perda há exatos 25 anos.

O nascimento em Córdoba, fruto do casal Pablo Hohberg e Angela Justa Roca, lhe rendeu o natural apelido de Cordobés, embora tenha deixado a cidade ainda aos três anos para morar em Rosario. Foi após a perda do pai, estancieiro alemão vitimado por um infarto fulminante. Alto e corpulento, o sobrenome era apropriado àquele meia-direita: a palavra Hohberg pode ser traduzida como “alta montanha”. Profissionalizou-se em 1945 justamente no time do Central Córdoba (que é rosarino, apesar do nome – também não deve ser confundido com o de Santiago del Estero, participante da elite argentina atual), na segundona. Quando Hohberg recém-chegou aos 50 anos, em outubro de 1977, relembrou sua carreira em longa entrevista ao El Diario, da qual retiramos suas declarações:

“Corria o ano de 1946. Várias equipes se interessaram por mim. Boca, Huracán, Newell’s, Rosario Central. Juntamente com Gregorio Pin, fomos ao Boca (…). Fizemos um teste em jogo com o Banfield e me lesionei. Entorse de tornozelo. O médico disse que temia que não poderia voltar a jogar futebol. Não lhe fiz muito caso. Voltei a Rosario. Ao fim da semana seguinte, joguei contra o Unión de Santa Fe. Um diário intitulou: ‘Hohberg não servia no Boca, mas resultou um craque no Central Córdoba!’. Se insistiu que eu passasse ao Newell’s ou Rosario Central. Pediam pelo meu passe uma quantia determinada e jogadores. O clube aceitou e acordou condições com o Newell’s. Porém, nesse mesmo dia e na mesma hora, separadamente, eu combinava com o Rosario, porque economicamente me convinha mais. Se armou flor de escândalo. Finalmente, os dirigentes compreenderam e passei ao clube que queria. Tinha 19 anos e assinei por 400 pesos por mês. O dobro do que ganhava qualquer pessoa”.

Hohberg e o futebol argentino: nos inícios no Rosario Central e, veterano, prestes a enfrentar o San Lorenzo, de José Sanfilippo, nas semifinais da primeira edição da Libertadores. O amarelo listrado lhe caía bem…

Se ele não apareceu tanto na elite em 1946, desencantou em 1947. Primeiramente, vitimando a própria seleção uruguaia em 11 de fevereiro, em derrota de 2-1 pela seleção rosarina em amistoso não-oficial. Depois, com onze gols no campeonato – um deles no clássico com o Newell’s e outro sobre o campeão River. “Demos o que falar (…). Ao fim desse ano, viemos a Montevidéu jogar um hexagonal. Peñarol, Nacional, Boca, River, Newell’s e Rosario Central. Com um braço entalado, me tocou jogar com o Nacional. Ganhamos de 4-2 e anotei dois gols. Saímos campeões, mas o contrato havia chegado a seu fim… não houve acordo para renovação. Me chamou o presidente do Rosario Central, Adolfo Baglione, e me perguntou se eu gostaria de jogar em Montevidéu. O Nacional se interessava pelo meu concurso. Respondi que sim e esperei. Passaram vários dias e nada. Logo, um senhor bateu na minha casa”. Os canallas na verdade ficaram em terceiro, mas Hohberg de fato marcou duas vezes em pleno estádio Centenário naquele 6 de dezembro de 1947, pela “Copa Três Cidades”. Curiosamente, a ocasião rendeu embate com outro argentino da seleção uruguaia, o superartilheiro Atilio García.

Mas, voltando à narrativa envolvendo o senhor que visitou seu lar: “minha mãe o atendeu e perguntou por mim. Seu nome: Humberto Dorsa. Falamos. Nos pusemos de acordo e quando ele já se retirava, lhe perguntei: ‘por supuesto que você é do Nacional? Avise!’. Exclamou e agregou: ‘eu sou dos contrários!’. Vim ao Peñarol em troca por Mario Lorenzo, um beque. Estreei contra o Nacional pelo time B e perdemos de 3-2. No domingo seguinte, ganhamos do Rampla por 2-0, com ambos gols meus. Em pouco tempo, chegou a greve de jogadores que começou em 1948 e terminou em 1949. Depois de encontrar-se a solução, o húngaro [Emérico] Hirsch ocupou o cargo da direção técnica aurinegra. Ele deu o visto bom e passei a ser definitivamente jogador do clube”.

O primeiro gol sobre o Nacional veio logo no primeiro clássico. O livro Historia de Peñarol conta os bastidores: “veja, você jogou bem contra times pequenos e em um clássico reserva, mas isso no Peñarol não é suficiente. Tem que demonstrar ao torcedor que serve em jogos como o de hoje. Sabe quem vai lhe marcar?”, indagou-lhe Obdulio Varela. “Sim, [Eusebio] Tejera”. “Bueno. Sabe o que vai lhe fazer? Nos primeiros 5 minutos, vai tratar de saber quem é você, o golpeará para testa-lo e ver se aguenta. Depois eu agarro uma bola e lhe vou entregar dividida entre os dois. Você sabe o que tem que fazer”. Na primeira disputa, Hohberg levou uma cotovelada no estômago. Depois veio então a bola rasteira de Obdulio. “Eu soube o que tinha que fazer e o fiz. Nem me queixei de Tejera nem ele se queixou de mim depois”. O argentino anotou o segundo gol em vitória por 3-1.

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Ghiggia, Hohberg, Míguez, Schiaffino e Vidal, a “Esquadrilha da Morte” do Peñarol de 1949. Os outros quatro foram titulares do Uruguai campeão mundial de 1950

O Peñarol vivenciou o ano de 1949 de forma arrasadora, com média de 3,5 gols por jogo. Sofreu só uma derrota em 32 jogos naquele ano, incluindo amistosos. O quinteto ofensivo Alcides Ghiggia (recém-recusado pelo time argentino do Atlanta!), Hohberg, Omar Míguez, Juan Alberto Schiaffino e Ernesto Vidal (outro vindo da Argentina e do interior cordobês) foi apelidado de “Esquadrilha da Morte” e fez com que três adversários deixassem o estádio durante o intervalo: Rampla, o Liverpool uruguaio e, na ocasião mais célebre, o grande rival. No chamado Clásico de la Fuga, um dia após o 23º aniversário de Hohberg, o Nacional abandonou após deixar o primeiro tempo perdendo de 2-0 com dois jogadores expulsos. No returno, o argentino marcou duas vezes em goleada por 4-3 nos tricolores. O Peñarol seria a base da seleção uruguaia campeã mundial no ano seguinte, o que quase incluiu o técnico Hirsch. E também Hohberg.

“Esse ano foi de grandes realizações. Me consideraram para a seleção uruguaia. A AUF realizou gestões ante a FIFA à procura de minha habilitação, mas ainda não tinha o tempo para tirar a carta de cidadania e devi permanecer à margem. Fiquei aqui enquanto o Uruguai se classificava campeão do mundo. Aqui continuou a atividade. O Peñarol, sem nove titulares, igual seguiu ganhando. Retornados os mundialistas, chegou o clássico. Lembro que nem os nossos, nem os do Nacional, queriam se enfrentar. Tiveram que fazê-lo. Ganhamos por 3-0 e anotei os três gols. Depois até 1954 não creio que haja aspectos interessantes para ressaltar em minha vida futebolística com a exceção de que sempre fui bem”. Até 1954, Hohberg foi campeão uruguaio em 1949, 1951 e 1953 e artilheiro da liga em 1951 e 1953.

Em 1950, só ele daquele quinteto havia deixado de ir ao Brasil (até Vidal também vestiu celeste). Em 1954, já com tempo de residência no Uruguai suficiente para naturalizar-se, estreou pela seleção charrua em 10 de abril. Quem diria: perdeu de 4-1 em pleno Estádio Centenário para o Paraguai, saindo do banco para substituir Javier Ambrois. Apesar de marcado pelo episódio de superação do qual já falaremos, a trajetória de Hohberg pela seleção conheceu muito mais derrotas que vitórias. Em 18 de abril, o Paraguai segurou o 1-1 em Assunção. Em 23 de maio, empate em 3-3 com a Suíça em Lausanne, jogo em que Hohberg marcou seu primeiro gol celeste. Em 5 de junho, enfim uma vitória: 7-1 na extinta seleção do Sarre. O argentino só voltaria em campo nas épicas semifinais da Copa, contra a sensação Hungria – a primeira seleção que impediu o Uruguai de ir até o fim em um torneio mundial.

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Com o Uruguai na Copa de 1954. É o penúltimo agachado

“Fomos quartos. Eu só joguei as duas últimas partidas. Contra Hungria e Áustria. Antes, havia estado lesionado. Com os húngaros perdemos por 4-2 e me tocou converter os dois gols uruguaios. A Hungria foi a melhor equipe que vi em minha vida. Era uma máquina infernal. Caímos também contra a Áustria, mas já foi diferente…”. Os gols vieram com a partida ainda em 2-0 para os magiares. Aos 31 minutos do segundo tempo, o argentino foi lançado por Schiaffino e tocou na saída do goleiro Gyula Grosics. Aos 41, empatou em confusão na área adversária. Foi tão emocionante que foi soterrado pelos colegas na comemoração e ele ficou inerte após saírem; o coração que levara seu pai parou ali. Hohberg perdeu o pulso por alguns segundos (teria ficado “morto” por quinze), na imagem que abre essa matéria. Mas foi reanimado, jogou a prorrogação – e nela ainda acertou a trave húngara. A plateia suíça, eufórica, acenou lenços após uma das partidas mais épicas da história das Copas.

A derrota para a Áustria, no jogo pelo terceiro lugar e no qual Hohberg também marcou, foi creditada ao desânimo e à ausência do caudilho Obdulio Varela. Hohberg jogou mais duas vezes pelo Uruguai, ambas em 1956: 2-1 na Tchecoslováquia no Centenário e derrota de 2-1 para a Argentina natal em Paysandú. Eram tempos em que equipes sul-americanas batiam de frente com as europeias também no financeiro. E eram tempos também de severa lei do passe: “ininterruptamente segui atuando no Peñarol, enquanto apareciam equipes europeias interessadas pelo meu concurso. Especialmente os italianos, Roma e Juventus. O Peñarol me declarou intransferível. Em 1956, o mesmo emissário que queria me levar ao velho mundo insistiu e mandou eu negociar o passe, porque ele já havia fracassado”.

“O fiz, pois podia ir ao Reims (…). Nada aconteceu, pela quotização da transferência. Ao terminar a temporada firmei um novo contrato e um contrapasse para que em caso de surgir um interessado, pudesse ir. Chegou 1958. Enrique Fernández, que dirigia o Sporting Lisboa, me mandou buscar. Fui, pratiquei, joguei e gostei, mas não me contrataram. Podiam atuar três estrangeiros por clube e comigo éramos cinco [na verdade haviam mais: o argentino Diego Arizaga, o uruguaio José Caraballo e os brasileiros Ivson, Osvaldinho, Vadinho e Faustino Pinto]. Voltamos e tivemos o acidente de avião”. Vale ressaltar que na época o Reims foi duas vezes vice-campeão da Liga dos Campeões; já sobre o acidente, ocorrera falha mecânica que acarretou em incêndio. Só não resultou em tragédia pois o piloto conseguiu realizar um pouso aquático perto da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde esperaram por quatro horas o resgate de helicópteros. O craque ficou sem muito patrimônio e decidiu parar de jogar, virando cobrador da estatal elétrica.

Hohberg como técnico do Nacional em 1976. E carregado pela torcida do Alianza Lima no bicampeonato peruano de 1977-78: também foi campeão treinando o rival Universitario

“Foi aí quando tive outra grande mostra de carinho do povo uruguaio, do Peñarol todo. Os sócios encheram de assinaturas um livro Pela Recuperação de Hohberg, que hoje guardo em meu poder. Voltei. Comecei na reserva. Fazia muito tempo que estava parado. Ao tempo, outra vez titular. Era 1958. (…) Estávamos muito atrás do Nacional, mas descontamos vantagens e saímos campeões. Em 1959 e 1960, repetimos. Precisamente, também em 1960 saímos campeões da América e perdemos a Intercontinental ante o Real Madrid. Foi minha última partida no Peñarol, setembro de 1960…”. Aquele título em 1958, garantido por um ponto sobre Nacional e Rampla, iniciava a fase mais gloriosa dos carboneros, que viriam a ser pentacampeões uruguaios pela primeira vez, igualando recorde então exclusivo do Nacional. A taça se garantiu com um sofrido empate com o Defensor. Gol de Hohberg.

Homem que no auge fora um jogador completo, corpulento, temperamental e de chute forte (é lembrada uma paulada sua em escanteio onde a bola pegou no travessão e voltou passando por cima de sua cabeça), El Verdugo Hohberg seguiu a carreira no financeiramente atrativo futebol colombiano pelo Cúcuta ainda em 1960, pendurando as chuteiras em 1961 – entre os cinco artilheiros da liga. Saiu do Peñarol com 277 gols, 19 deles no clássico com o Nacional. Na final da Libertadores de 1960, sua saída do banco foi vista como tranquilizadora para os colegas (Alberto Spencer declararia que desenvolveu confiança em seus inícios de Peñarol por causa da ajuda do argentino), que em Assunção perdiam por 1-0 para um Olimpia cheio de gozadores – os paraguaios haviam se classificado no lugar do Uruguai para a Copa de 1958. O empate do título da primeira Libertadores veio a sete minutos do fim.

Como treinador, Hohberg voltou a levar o Uruguai ao quarto lugar, na Copa de 1970. Foi o melhor desempenho celeste desde 1954 até novo quarto lugar, em 2010. Experiente, Hohberg armou a melhor defesa da Copa de 1970 após levar quatro gols do Peru em amistoso preparatório. Nas quartas-de-final, ordenara que os comandados não acompanhassem a correria soviética e só tocassem a bola. Venceu a URSS pelo cansaço, na prorrogação, gol de uma substituição certeira (Víctor Espárrago). A mesma ideia foi aplicada contra o Brasil, que também preferiu buscar tocar a bola. Os uruguaios até ficaram à frente do placar, mas levaram a virada canarinha nos últimos quinze minutos.

Rodando o continente, Hohberg (ao meio) treinou a seleção do Equador em 1981 antes de radicar-se de vez no Peru, seleção defendida recentemente pelo neto Alejandro

O sucesso não se repetiu nas eliminatórias à Copa de 1978, com a Celeste eliminada; no meio-tempo, Hohberg treinou no Peru o Universitario que eliminou justamente o Peñarol na Libertadores de 1975 – heresia que na sequência reforçou-se entre abril e setembro de 1976, quando foi técnico justamente do Nacional, emendando dali um fracassado regresso como treinador da seleção uruguaia. Na Montevidéu adotiva, teve ainda diversos outros ciclos pelos vizinhos da dupla gigante: em passagens menos lembradas, teve como nanicos mais ilustres no currículo de técnico as equipes do Bella Vista, do Rampla e do Racing local.

Um dos mais rodados personagens do futebol sul-americano, este argentino de origem alemã naturalizado uruguaio, cordobês de nascimento e rosarino de crescimento, que quase foi do Newell’s e terminou no Rosario Central, que quase suou pelo Nacional e o fez pelo Peñarol, treinou equipes também por Equador (inclusive a seleção local, em 1981), Colômbia e em outros clubes do Peru (foi campeão nos rivais Universitario, com o qual até derrotou por 3-0 no fim de 1974 o Independiente campeão da Libertadores, e Alianza Lima no auge do futebol local), onde radicara-se e ainda descansa.

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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