Se o Vélez teve seu ciclo dourado entre 1993 e 1998, saboreando ao menos um título por ano, tal período não foi exatamente uniforme no elenco. Carlos Bianchi saíra ainda em 1996, por exemplo. Seu sucessor, Osvaldo Piazza, outro ex-jogador do clube, ficou um ano – o suficiente para ser três vezes campeão. O comandante que fechou a série, por sua vez, era um “estranho no ninho”: ninguém menos que Marcelo Bielsa, que entre tapas e beijos com o plantel, terminou valorizado. Afinal, foi na versão do Loco que aquele Vélez teve sua mais alta pontuação nos torneios curtos. Campanha que o catapultou à seleção pós-Copa 1998.
Vale resumir como se deu aquele ciclo. Sob Bianchi, o clube dera fim, no Clausura 1993, a um jejum de 25 anos sem títulos. Até então, a elite argentina havia sido vencida pelos de Liniers apenas em 1968, quando El Virrey era então uma jovem promessa no ataque do clube. O Vélez era uma instituição forte, mas de futebol pouco graúdo, em nada se assemelhando ao prestígio de hoje. Em 1994, um clube de alcance limitado ao bairro de Liniers conseguiu a Libertadores, sobre o São Paulo de Telê. E o Mundial, dominando um Milan não menos histórico.
Bianchi ainda conseguiu o primeiro bicampeonato nacional seguido para o Fortín, que emendou o Apertura 1995 com o Clausura 1996. Antes do fim do torneio, foi contratado pela Roma, com Piazza assumindo o time nas rodadas finais. Piazza também venceu a Supercopa 1996, passando por cima de Grêmio, Santos e Cruzeiro na campanha, e a Recopa em 1997, até hoje a última taça internacional de La V Azulada.
O Vélez tornara-se o mais novo postulante a “sexto grande”, rótulo simbólico que, por tradição, é do Huracán, desde os anos 30. Este clube, contudo, passou a ganhar concorrentes a partir dos anos 60, por conta da decadência própria e da ascensão meteórica de equipes até então sem a mesma expressão. Antes do Vélez juntar-se a estes, o postulante da vez havia sido o Newell’s. Muito por conta de… Marcelo Bielsa. Falamos aqui, aqui e aqui. Assim, o presidente velezano resolveu apostar nele; as campanhas domésticas de Piazza não agradavam mais, com o 13º lugar no Apertura 1996 e o 5º no Clausura 1997.
Além de torcedor fanático do Newell’s, Bielsa fora jogador rubronegro e já trabalhava nas categorias de base quando assumira o time principal da Lepra. Mas, com o Vélez, não possuía nenhum laço. Entre 1992, quando deixara o time rosarino, e 1997, não conseguira títulos no México, onde trabalhou no Atlas e no América naquele período. O que não o impediu de impor-se e assim ter curtos-circuitos com alguns nomes já históricos no novo clube, como o mitológico José Luis Chilavert, um dos remanescentes de 1993.
Outra figura presente desde o início do ciclo de vitórias era o volante Christian Bassedas, que resumiu: “de Osvaldo (Piazza), que era um amigo, passamos a Bielsa. Agora, nos conhecemos e não há problemas, mas no início nos cansava com os detalhes. Te faz repetir coisas básicas uma e outra vez. Além disso, trabalha com outro código futeboleiro. Bianchi, (Alfio) Basile, (Héctor) Veira são técnicos que bancam seus jogadores, porque sabem que na hora da verdade, esses jogadores vão salvá-los. Marcelo, ao contrário, se te vê mal, te tira… mas há duas coisas importantes a seu favor: que nós jogadores nos cansamos muito fácil e que o cara não é mal caráter, é um direito”.
Iarley, treinado por Bianchi no Boca, contou aqui ao Futebol Portenho que o dito treinador “não inventa muita coisa” e passa tranquilidade aos jogadores ao tirar-lhes o máximo da capacidade, sem cobranças excessivas. Sob Bielsa, as jogadas ensaiadas e certa liberdade, ainda que pragmáticas, deram lugar ao estilo do Loco, que por vezes exige certa mecanização dos jogadores – um dos métodos de seus treinamentos é fazer do campo um tabuleiro de xadrez, “programando” por onde cada jogador deve ir.
No início, vexame: o campeão da Supercopa 1996 sequer avançou da fase de grupos na edição de 1997, chegando a perder em casa para o Flamengo por 0-3. Mas o 4º lugar no Apertura 1997 lhe bancava, e pouco a pouco as discussões cara-a-cara com o elenco foram sendo vencidas. Naquele Clausura 1998, o grupo conseguiria 81% dos pontos em disputa, dando mostras da eficiência bielsista, com um jogo agressivo, contundente e veloz: chegou a jogar com cinco atacantes (Fernando Pandolfi, Martín Posse, Carlos Cordone, Patricio Camps e Darío Husaín), alguns saídos dos juvenis, bastante valorizados pelo novo treinador.
Foram 46 pontos, na época um recorde nos torneios curtos – só o San Lorenzo de 2001 superou, com um a mais, quando os azulgranas se embalaram em um recorde nacional de vitórias seguidas (treze). O esquema que Bielsa viria a imprimir na seleção, o 3-3-1-3 (Samuel, Pochettino e Placente na defesa, os alas Zanetti e Sorín e o volante Simeone no meio, Verón ligando meio e ataque e, na frente, um tridente com Ortega e Claudio López nas pontas e Batistuta centralizado), já se exibia no seu Vélez: “uma linha de três defensores, volantes nos flancos e três homens na ponta era o estilo (…) desse Vélez demolidor que só perdeu um jogo em todo o torneio”, escreveu o Clarín.
No gol, a estrela Chilavert. O tridente defensivo tinha Flavio Zandoná, Víctor Sotomayor e Mauricio Pellegrino. No meio, o volante era Claudio Husaín, com Carlos Compagnucci e Raúl Cardozo pelos lados e, na ligação com o ataque, Christian Bassedas. Na frente, Patricio Camps e Martín Posse, a dupla ofensiva que vencera a Supercopa 1996 e a Recopa 1997 sob Osvaldo Piazza, virou um trio, cuja vaga era completada mais comumente por Carlos Cordone ou Darío Husaín (irmão de Claudio).
O elenco também já tinha as promessas Lucas Castromán e Rolando Zárate, de grande destaque posterior. Na campanha irrepreensível, a única derrota fora para o San Lorenzo. Nos demais 18 jogos, quatorze foram vencidos, sendo oito como visitante. Uma dessas vitórias fora foi um 3-2 no Boca na Bombonera, na estreia profissional de Castromán, que marcou; o boquense Arruabarrena marcou contra e Chilavert deu a vitória ao converter pênalti no fim. O Vélez só voltaria a vencer na Bombonera dez anos depois.
De outros resultados destacados, houve o 3-0 no Independiente (dois de Camps e um de Darío Husaín), o 6-1 de virada no Colón (dois de Posse e um de Chilavert, Federico Domínguez, Cordone e Darío Husaín) e 4-1 no Clásico del Oeste, contra o Ferro Carril Oeste (dois de Posse e um de Camps e Cordone), rival tradicional que vinha sendo cada vez mais desvalorizado pelas bandas de Liniers. O jogo que selou o título foi uma vitória de 1-0, mas também de significado especial.
Foi diante do Huracán, contra quem o Vélez concorre a “sexto grande”. Em 1971, o Fortín era o favorito para ser campeão nacional. Na última rodada, recebeu o Huracán em casa e abriu o placar no primeiro minuto. O adversário vinha de campanha irregular, mas em grande atuação de Narciso Doval (o mesmo ídolo de Flamengo e Fluminense), virou e venceu por 2-1. O concorrente ao título era o Independiente, que estava um ponto atrás, venceu o seu compromisso e ultrapassou o Vélez, sendo o campeão.
Onze anos antes de levar a melhor sobre o próprio Huracán na casa adversária quando ambos concorreram pelo título do Clausura 2009, o Vélez já havia desentalado um pouco a espinha naquele 31 de maio de 1998. Com uma rodada de antecipação, a taça se garantiu com Posse acertando de cabeça um cruzamento de Cordone, aos 37 do primeiro tempo. Na ocasião, os fortineros se alinharam com Ariel de la Fuente, Zandoná, Sotomayor, Pellegrino; Claudio Husaín, Compagnucci, Cardozo; Bassedas; Cordone, Camps e Posse. Camps foi o artilheiro dos campeões, com dez gols, seguidos pelos nove de Posse.
Ao fim, o vice-campeão acabou sendo o Lanús, mas àquela altura o único concorrente era o Gimnasia LP, que perdeu por 2-3 para o ex-bielsista Newell’s em Rosario e deu adeus às chances matemáticas. O goleiro foi De la Fuente porque a partida ocorreu já após as convocações para a Copa 1998. Chilavert estava com a delegação de seu Paraguai. O mais incrível é que o reserva de Chila também iria ao mundial: Pablo Cavallero, pela Argentina, ocupou a vaga que poderia ter sido de Carlos Navarro Montoya, mais midiático e que enfim recebera autorização da FIFA para defender a Argentina de seus pais e da sua criação (ele nascera na Colômbia e a defendera nas eliminatórias à Copa 1986, se arrependendo depois).
De la Fuente era apenas o terceiro goleiro. A grande polêmica na seleção argentina foi a ausência de Bassedas, presente em praticamente todo o ciclo do técnico Daniel Passarella, mas preterido na convocação final em favor de um renegado e veterano, Abel Balbo. Esse baque ocorreu dois dias antes daquela partida decisiva contra o Huracán. O meia foi ovacionado de forma especial, sob o cântico “Bassedas, nós sim te respeitamos!”. Amparado pelo sucesso no Vélez, Bielsa, do seu lado, ocuparia o cargo do próprio Passarella após a Copa – El Loco havia ido primeiramente ao Espanyol, mas nem chegou às cinco partidas no time catalão, logo rescindindo para rumar à Albiceleste.
Humilde, Bielsa pouco atribuiu a si o sucesso de 20 anos atrás, o último título de sua carreira no futebol adulto (desde então, só as Olimpíadas de 2004): “o Vélez foi campeão pela hierarquia de suas individualidades. [Meus méritos foram] dar o esquema referencial para aglutinar essas individualidades. E acompanhar e harmonizar o grupo e participar para que a dimensão de cada jogador se aproxime de sua potencialidade”. Enquanto os comandados davam a volta olímpica, preferiu ficar na solidão, no vestiário. O Fortín demoraria sete anos para ser campeão outra vez, seu maior jejum desde a ascensão pós-93.
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