Nos últimos anos, com algumas exceções, o Superclásico não acumulou muitos gols nem tanta emoção. A história era diferente nos anos 90. Antes do peso legalmente igualado ao dólar desembocar na pior crise do país, os astros tendiam a ficar mais tempo. Entre 1994 e 1998, jogaram-se oito Superclásicos e só dois não terminaram em goleada ou pelo menos cinco gols somados. Anos em que “o Boca ganhava clássicos e o River, campeonatos”. Há vinte anos, o River não impedia a permanência de um tabu sem vitórias na própria casa pendente desde 1992 (veja), mas pôde festejar a única vez em que quem começou perdendo por três de diferença não terminou derrotado no encontro.
Esse jejum do River só não foi geral pois em 1994 a Banda Roja conseguiu duas vitórias em plena Bombonera (uma, por 3-0), jamais voltando a vencer o rival na casa contrária por duas vezes seguidas. O Boca respondia com contratações midiáticas sem sorte. Maradona e Caniggia vieram juntos em 1995, mas custavam a brilhar juntos. O atacante loiro pouco produziu no Apertura 1995, mas ainda assim os liderados por Dieguito foram líderes invictos até a antepenúltima rodada. Mas em reviravolta inesperada, conseguiram perder as chances de título logo após a penúltima. Entenda como.
Caniggia deslanchou no Clausura 1996, inclusive voltando à seleção mesmo mantendo os cabelos compridos tamanha a boa fase. Agora, era a vez de Maradona decair, perdendo incríveis seis pênaltis seguidos na campanha. Em um deles, Cani ao menos aproveitou o rebote para marcar um de seus três gols no memorável 4-1 sobre o River em julho de 1996, lembrado pelo beijo na boca entre os amigos (relembre aqui). A constrangedora freguesia do River na rivalidade ficou evidente como nunca, pois apenas três semanas antes os millonarios havia vencido a Libertadores.
Com aquela vitória, o Boca, que ainda tinha Verón, ficou um ponto atrás do líder Vélez faltando três rodadas para o fim do Clausura. E voltou a derrapar nessa reta final, onde só acumulou um único ponto em nove. Falamos aqui: Maradona, entristecido, voltou às drogas, anunciando uma pausa de 45 dias para buscar tratamento. Ela viraria quase um ano. Já Verón e Caniggia tinham propostas da Europa e também não permaneceram. La Brujita foi à Sampdoria, enquanto El Pájaro terminou também tirando um ano sabático: sua mãe suicidou-se em setembro de 1996.
Para a temporada 1996-97, o River compensou as perdas pós-Libertadores de Crespo, Almeyda e Amato com um pacotão: Salas, Julio Cruz, Monserrat, Berizzo e a volta do ídolo Berti foram os principais reforços. Outro a sair rumou ao próprio Boca, o uruguaio Cedrés, que não foi o único vira-casaca anunciado pelo novo clube: também apareceram o zagueiro Fernando Cáceres e o volante Toresani. Outra contratação midiática foi a de Rambert, antigo artilheiro do Independiente que não vingara na Internazionale. Mas quem daria certo seriam sobretudo Abbondanzieri e Cagna.
Hugo Guerra também foi uma novidade a ganhar carinho eterno nos auriazuis: efêmero demais para virar propriamente um ídolo, mas alçou a manutenção da freguesia sobre o River a ares inacreditáveis. Pela sexta rodada do Apertura, os dois estavam em um 2-2 na Bombonera, com direito a gol do doblecamiseta Cedrés, que apenas dois meses antes vestia a camisa contrária naqueles 4-1 de Caniggia. O River jogava melhor, mas no último minuto levou um gol de Guerra. De nuca. Detalhamos aqui a noite do Nucazo de Guerra, um dos maiores folclores da rivalidade.
O Boca só crescia perante o rival. Pois no Apertura, mais perdeu (sete) do que ganhou (seis), campanha que custou o emprego do técnico Bilardo, que tinha a credencial do título da Copa do Mundo de 1986. Além do Nucazo, a única boa lembrança foi a estreia profissional de Riquelme. Já o River sabia reagir rápido aos golpes. Depois de uma estreia insossa de 0-0 em casa com o Gimnasia LP, engatou quatro triunfos seguidos. Veio o Nucazo, sucedido por um 4-1 em cima do Platense e um 5-2 sobre o Rosario Central no Gigante de Arroyito, para aplausos até dos rosarinos.
Após a derrota do mundial para a Juventus, veio um 5-1 no Ferro Carril Oeste. O Millo ganhou o campeonato por antecipação, com nove pontos de vantagem sobre o vice, o Independiente do técnico César Menotti. Para o início de 1997, o time vendeu Ortega e perdeu Salas por uma lesão grave de pré-temporada, mas os reforços se resumiram a Trotta e Maisterra enquanto Gallardo se efetivava na titularidade. No Boca, mais que Traverso e Pedro González e a expectativa pela volta de Maradona (que só viria a jogar uma vez no Clausura, em julho), quem chegou com estardalhaço foi a Nike, com uma polêmica camisa com finas listras brancas separando a faixa dourada do azul. Já a principal contratação xeneize estava no banco: o técnico Héctor Veira.
Veira era outro vira-casaca. El Bambino havia em 1995 tirado o San Lorenzo do pior jejum azulgrana (21 anos) e em 1986 levara o River a seus primeiros títulos na Libertadores e no Mundial. De início, foi irregular. 1-0 no Estudiantes, 0-1 para o Colón, 1-1 com o Lanús, 0-4 para o San Lorenzo e 4-1 no Huracán Corrientes foram os primeiros resultados. Diferente de um River afiadíssimo, que nas mesmas rodadas fazia 2-0 no Gimnasia, 4-0 no Unión, 2-0 no Banfield, 3-0 no Huracán “verdadeiro” (de Buenos Aires) e um inesperado 1-1 com o sumido Deportivo Español. Para o apito, alguém que parecia “imparcial”: Javier Castrilli, sempre polêmico, havia arbitrado goleadas polêmicas que ambos sofreram (veja), expulsando Passarella em um Newell’s 5-0 River e Maradona em um Vélez 5-1 Boca.
O Boca foi arrasador como pouquíssimas vezes se viu no Superclásico. Com menos de meia hora, já fazia 3-0 em pleno Monumental. E era para ser 4-0. “Foi um jogo raríssimo. Era para ficar na história como uma goleada espetacular e terminou ao contrário”, admitiu Cedrés. Com cinco minutos, o uruguaio vira-casaca, comemorando com dancinha e tudo, voltou a fazer a lei do ex, em cabeceio distante e lento, mas bem colocado. Completou cruzamento de outro uruguaio, Sergio Manteca Martínez – único titular remanescente do título nacional anterior dos xeneizes, o Apertura 1992.
Aos 17 e aos 29, novos gols uruguaios, agora de Martínez. No primeiro, Cedrés puxou um contra-ataque e lançou Latorre. El Gambetita encarou a marcação, pedalou e arriscou um chute sem tanto ângulo, mas serviu para conseguir um rebote generoso para Martínez, sem marcação. A bola escapulira pingando entre as pernas de Bonano e sobrou a um passo da linha do gol. O camisa 10 Pompei só conseguiu aplaudi-los. Pois desperdiçou sua chance aos 25, ao perder um pênalti que Cedrés sofrera. Bonano espalmou, mas mal comemorou. Parecia antever que não escaparia depois de dois minutos.
Um passe plástico de Latorre conectou um contra-ataque para Cedrés puxar pela direita. A assistência e a autoria foram uruguaias, agora com retribuição: Cedrés, inteligente, recuou levemente a bola em passe para Martínez, livre pelo meio, para livra-lo do impedimento (não havia nenhum jogador de linha do River à frente, mesmo não intencionalmente). Manteca emendou de primeira. Mergulhou na comemoração, mas quem estava na lona era o Millo. Que, ainda no primeiro tempo, demonstrou sinal de respiração. Restava saber se era um último suspiro.
Aos 43 minutos, Berti (por sinal, formado no Boca) recebeu de Francescoli e acreditou. Pedalou e passou Arruabarrena e soltou um disparo cruzado. O goleiro Guzmán resvalou na bola, mas ela entrou. O River voltou com muita vontade para o segundo tempo, o que não significava necessariamente cabeça: Berizzo foi expulso tolamente aos três minutos ao, já tendo amarelo, agarrar e desequilibrar Latorre. Ainda assim, o Boca se resumiu ao contra-ataque. E em um deles tudo se igualou em cartões vermelhos: Martínez, quase no mano-a-mano com Bonano, tentou ajeitar a bola com a mão.
Aos 32 minutos, sete após a expulsão de Martínez, um passe errado desembocou em um lançamento ao reserva Luigi Villalba (que substituíra Escudero no intervalo). Tocou com classe para encobrir Guzmán, de nada adiantado a corrida do lento zagueiro Fabbri para evitar que a bola cruzasse a linha. Diferentemente do gol de Berti, este já foi celebrado com mais euforia: talvez tenha sido tamanha que Villalba mal conseguiu tirar direito a camisa para comemorar, talvez ele quisesse se livrar do amarelo. “Que linda fica a partida!”, celebrou a narração de Marcelo Araujo.
Celso Ayala, por sua vez, não viu nenhum problema em despir o peito. Pudera. Aos 43 minutos, um escanteio de Berti pela esquerda se endereçou na medida para o salto do zagueirão paraguaio, que subiu mais que Fabbri para soltar um míssil de cabeça e terminar soterrado por titulares, reservas e gandulas (como um garoto de sobrenome D’Alessandro) na comemoração. Guzmán mal vira e mal tivera reflexos para impedir o empate. Ainda houve tempo para um último festejo às arquibancadas millonarias. Não com um gol, pois Gancedo perdeu a chance de uma histórica virada, mas com o “traidor” Cedrés expulso após falta em Villalba. “Fecham-se as cortinas do Superclásico do futebol argentino: River 3, Boca 3″, encerrou Marcelo Araujo seu trabalho.
O encontro simbolizou a campanha do Boca no Clausura, com mesmo números de vitórias e derrotas (seis). E a do River: após o duelo, encarou derrotas caseiras nos pênaltis na Recopa (Vélez) e nas oitavas da Libertadores (Racing) e chegou a levar de 5-1 do Colón, o vice. Mas, outra vez, terminou campeão por antecipação. A reação do Boca para o Apertura foi promover novamente a dupla Maradona e Caniggia e reforços que fariam história: Palermo, Bermúdez e os gêmeos Barros Schelotto. Com eles, Veira conseguiu grande trabalho no segundo semestre. O Boca venceu o River de virada no Monumental e somou 46 pontos, pontuação só superada sete vezes na história dos torneios curtos. Para o azar xeneize, uma delas foi naquele torneio. O River somou 47. Sobre esse campeonato histórico que aposentou Maradona e Francescoli, dedicamos este Especial.
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