Ele já havia marcado de falta. Já havia sido eleito o melhor goleiro do mundo. E liderado um time de bairro aos inimagináveis títulos máximos a nível continental e mundial. Mas foi em 1996 que José Luis Chilavert entrou mesmo para um outro patamar do futebol, especialmente o dos anos 90. Mais do que por novos títulos com o Vélez em 1996, Chila marcou três gols de falta em adversários argentinos. Números hoje modestos diante da obra de Rogério Ceni, mas um assombro para a época. Os alvos dos gols não poderiam ser mais emblemáticos, abrindo caminho para a moda aperfeiçoada por Ceni. O mais incrível e famoso, há 25 anos.
Chilavert havia sido eleito o melhor goleiro do mundo em 1995, uma evidência de que o paraguaio tinha muito talento, faceta ofuscada pelo temperamento e gols. Afinal, ele não marcara gols naquele ano. Foi campeão sim, na esquecida Copa Interamericana e um título argentino desbancando na antepenúltima rodada um Boca ainda líder, invicto e de Maradona e Caniggia. A eleição de 1995 também se devia muito por 1994, quando foi fundamental na Libertadores e no Mundial vencidos pelo Vélez,
Fora também em 1994 que marcara seu primeiro gol de falta, já após a Libertadores. O lance, porém, não fez todos os velezanos felizes: o batedor oficial era o zagueiro Roberto Trotta, então o capitão. Não se comoveu com a façanha do paraguaio e espumou de raiva no vestiário, episódio que detalhamos neste outro Especial. Carlos Bianchi manteve pulso firme sobre o ciúme de Trotta na ocasião. Mas as bolas paradas seguintes voltaram a ser batidas pelo defensor – incluindo o pênalti assinalado contra o Milan no Mundial. Até aquele 22 de março de 1996. E pensar que Chilavert poderia participar daquela partida pelo lado oponente…
O paraguaio havia sido sondado pelo River no fim de 1995. A revista El Gráfico chegou a preparar uma capa na qual Chila segurava sorridente a camisa millonaria. Não foi a primeira vez: em 1988, ele apareceu na capa da mesma revista como um dos reforços de César Luis Menotti para o River; seria trocado por Sergio Goycochea com o San Lorenzo, mas uma lesão de Goyco impedira a transferência (Goycochea pensava ter artrite e, temeroso que isso lhe custasse a carreira, não divulgou a princípio, ensejando boatos de que estaria até com AIDS: saiba mais). Em 1995, o negócio novamente não se efetivou, com o River se recusando a pagar os três milhões de dólares que o goleiro pedia.
Outra faceta menos conhecida é que aquele 22 de março de 1996 também foi uma redenção. Sim, Chilavert era campeão daquele Apertura 1995 sobre o Boca. Sim, a IFFHS – a Federação Internacional da História e Estatísticas do Futebol – o havia eleito o melhor goleiro do mundo (ele ainda é o único sul-americano eleito, e igualmente o único eleito ainda atuando no futebol sul-americano). Mas o paraguaio começara a temporada mais prejudicando que ajudando o Fortín.
Aquela noite histórica era a terceira rodada do Clausura. Na primeira, o Vélez vencia em casa o Banfield por 2-1. Chila, em determinado lance, soltou infantilmente o cotovelo no jovem Julio Cruz e foi expulso. O próprio Cruz empataria. Para a sorte da equipe do bairro de Liniers, conseguiu-se um gol nos últimos dez minutos – aliás, foi de pênalti, convertido por Trotta. Na segunda rodada, Chilavert esteve naturalmente suspenso. Visitando o Rosario Central, o Vélez arrancou um 0-0.
A terceira rodada foi aberta com aquele Vélez x River, na casa velezana. Dois timaços futuramente campeões continentais daquele ano (o River na Libertadores e o Vélez em uma Supercopa vencida sobre o Cruzeiro ao fim de uma campanha de 100% de aproveitamento), ambos travaram uma partidaça ofuscada por aquele gol antológico. La V Azulada, que naquele dia foi branca mesmo, se mostrava melhor posicionada em campo mas menos agressiva que La Banda Roja, municiada com Ariel Ortega, Enzo Francescoli e Gabriel Cedrés. Os visitantes dominavam a partir dos 10 minutos e chegaram a ter um pênalti não assinalado pelo árbitro Carlos Mastrángelo – de Trotta em Francescoli após El Príncipe ser habilitado por uma sucessão de dribles de Ortega.
E foi dos pés de Francescoli, que resolvera insistir na jogada em vez de cavar o penal, que o primeiro gol se desenhou: o craque uruguaio cobrou falta e Juan Gómez conectou com um míssil via peixinho aos 29 minutos de jogo, diante de um Chilavert sem reação. A resposta da casa veio no fim do primeiro tempo, com Germán Burgos encaixando arremate de José Turu Flores e tendo trabalho em uma tentativa de Patricio Camps.
No início do segundo tempo, o empate. Aos três minutos, Christian Bassedas, em jogada de craque (era ele o único velezano assiduamente convocado pela seleção e sua exclusão da Copa de 1998 foi uma das maiores injustiças cometidas por Daniel Passarella), carregou e driblou diante de três millonarios e cruzou. A bola resvalou em um deles, encobriu a saída de Burgos e Fernando Pandolfi cabeceou para as redes.
Chilavert apareceu bem pela primeira vez ao impedir um gol de Ortega, quando o Burrito conectou de primeira cara-a-cara. O gol histórico viria aos 21 minutos. Francescoli, em rara deselegância, cometeu entrada dura em Raúl Cardozo. Dura, mesmo: El Pacha não deixou de se contorcer ao chão nem diante do que viria em seguida. El Príncipe, constrangido, fora lhe acudir e desculpar-se. Os demais fortineros, sabendo da índole de Francescoli, não protestavam e não demonstravam pressa. Os demais, menos Chilavert.
Notando que Germán Burgos estava muito adiantado (“olhando passarinhos”, como zombaria Chila), o goleiro saiu em disparada da área e não ligou para as mãos do colega Mauricio Pellegrino (o atual técnico velezano) lhe pedindo para conter-se. O paraguaio arriscou desde antes do meio-campo encobrir o arqueiro rival. Surpreendeu até o juiz, que se contorceu para se proteger do petardo. O resto é pastelão millonario e poesia para os de Liniers: Burgos começou a voltar ao gol andando de costas, tropeçou e caiu enquanto era encoberto.
“Houve um problema na defesa e saí da área para gritar com Juan Gómez, mas não me escutava e eu ia saindo cada vez mais da área. Não estava adiantado porque sim. O engraçado é que depois do gol, Juan deu volta e me disse: ‘o que querias, imbecil?’. O xinguei demais”, justificaria o arqueiro adversário. Francescoli e o técnico riverplatense Ramón Díaz arregalavam os olhos, atônitos, enquanto a bola viajava por toda a noite e atravessava também a chuva até pingar depois da linha e sacudir as redes.
Enquanto Cardozo continuava ao chão, as demais caras e bocas do Vélez eram de uma incredulidade entre a euforia e a comoção. Chilavert, sabendo que o momento era dele, inicialmente se desviou dos abraços para mergulhar sozinho na imortalidade, quanto então a emoção dos colegas pôde amontoá-lo – registros bem captados pelo vídeo acima.
Mas partida continuou emocionante depois daquilo. E por isso merece um vídeo que demonstra os outros lances capitais, abaixo. Faltando menos de quinze minutos, Ramón Díaz pôs mais ofensividade, trocando Gabriel Cedrés por um Marcelo Gallardo ainda verde, mas mais habilidoso, e o volante Leonardo Astrada pelo atacante Hernán Crespo. E Crespo, justamente, empatou aos 41 minutos: chutou de primeira quase no travessão um balão de Ortega; as câmeras focaram num festejo de Burgos, que a princípio parecia vingado.
Mas Chilavert merecia terminar a noite vencedor. Aos 45, Martín Posse cobrou um escanteio. Marcelo Herrera, na marca do pênalti, cabeceou no canto e Burgos, novamente, chegou tarde – e foi a vez de Chila ser o focado, socando solitário diversas vezes o ar. Mais do que fazer justiça ao personagem da noite, esse gol se mostraria fundamental adiante, pois o Fortín seria (bi)campeão por um único ponto de diferença sobre o belo Gimnasia LP dos gêmeos Barros Schelotto; ainda é a única vez em que o Vélez foi bicampeão nacional seguido.
Como não poderia deixar de ser, a voz aguda do goleiro terminou ácida nas entrevistas de 25 anos atrás: “estou contentíssimo porque agora o que irão dizer os jornalistas que me odeiam?”. Em 2007, declararia: “meus (feitos) têm mais valor por isso, porque sair campeão com Boca ou River é mais fácil. Da mesma forma, se o gol de 60 metros no Burgos eu fizesse com a azul y oro, a torcida do Boca ainda estaria dando voltas no Obelisco”.
Se não criou a moda, popularizou-a para Rogério Ceni adota-la exatamente a partir de 1997. Pois aquele gol de 25 anos atrás abriu uma série: o paraguaio, depois dali, marcaria outros nove gols naquele ano (praticamente a cada mês desde março havia gol seu, uma enormidade). Em junho, com o Boca maradoniano no encalço por aquele Clausura, marcou duas vezes em um 5-1, em outra falta memorável – no ângulo do desafeto Carlos Navarro Montoya – e em pênalti.
Em setembro, ele então vitimou outra vez Burgos. Que, daquela vez, defendia a seleção argentina mesmo. Nova falta de Chila garantiu a seu Paraguai um ponto em pleno Monumental e a liderança provisória nas eliminatórias. Tudo isso ficou mais forte do que a irônica constatação de que Chilavert não foi reeleito em 1996 o melhor goleiro do mundo. A IFFHS premiou o alemão Andreas Köpke, vencedor da Eurocopa (assim como em 1994 preferira o cartaz do belga Michel Preud’homme na Copa do Mundo).
A justiça seria feita nos dois anos seguintes. Dino Zoff, a quem Chila tinha como ídolo, declarou-lhe: “nós éramos bons, mas tu deste hierarquia à posição”. A premiação individual daquele 1996 foi praticada na eleição de melhor jogador da América do Sul, em prêmio tradicional do jornal uruguaio El País. Chilavert é até hoje o único goleiro premiado nessa.
Para um Especial dedicado à carreira de Chilavert como um todo, clique aqui. Abaixo, vídeo da partida que rendeu uma das célebres narrações de Víctor Hugo Morales: “Corra, paraguaio, festeje, dê uma volta olímpica que vão lhe aplaudir até os silenciosos torcedores do River. Vélez ganha do River por 2-1, mas até o resultado dessa partida será uma anedota porque tudo será superado pelo incrível, fantástico, maravilhoso e nunca visto gol de José Luis Chilavert. Festeje, paraguaio!”.
Nota originalmente publicada nos 20 anos do lance, em 22-03-2016.
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