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20 anos de uma nova era dos goleiros: as faltas de Chilavert, 3ª parte – na seleção argentina, no Monumental

Ele já havia marcado de falta. Já havia sido eleito o melhor goleiro do mundo. E liderado um time de bairro aos inimagináveis títulos máximos a nível continental e mundial. Mas foi em 1996 que José Luis Chilavert entrou mesmo para um outro patamar do futebol, especialmente o dos anos 90. Mais do que por novos títulos com o Vélez em 1996, Chila marcou quatro gols de falta, somando cinco do tipo na carreira. Números hoje modestos diante da obra de Rogério Ceni. Mas um assombro para a época. Três desses de 1996, emblemáticos, abriram caminho para a moda aperfeiçoada por Ceni. Após vitimar nada menos que Boca e River, há vinte anos foi a vez da seleção argentina, em pleno Monumental de Núñez.

Chilavert havia sido campeão argentino com seu Vélez apenas duas semanas antes (escrevemos aqui), em partida onde saiu, para variar, como herói: pegou pênalti de Jorge Burruchaga e garantiu assim o empate com o Independiente. Foi justamente por um ponto que o Fortín foi campeão sobre o belo Gimnasia LP dos gêmeos Barros Schelotto. La V Azulada, na verdade, era bicampeã, pois havia faturado o Apertura. Ainda é a única vez que o clube foi bicampeão seguido.

Mas o Clausura foi mais marcante: além de ser o torneio em que os velezanos despediram-se do técnico Carlos Bianchi (que acertou com a Roma), a campanha incluiu vitórias históricas contra a dupla pesada Boca e River. Os millonarios levaram de 3-2 no último minuto em um jogo de alto nível ofuscado pelo sensacional gol de falta de Chilavert. Era o segundo da carreira e o primeiro em mais de um ano. Estatística também pouco lembrada por conta de como foi o gol, a 60 metros das traves defendidas por Germán Burgos, que naquele 1º de setembro de 1996 voltou a ser vítima de Chila.

Algumas rodadas depois, foi a vez de enfrentar o Boca da embalada dupla Diego Maradona e Claudio Caniggia. Os auriazuis virariam líderes se vencessem e abriram o placar em jogada dos dois astros que culminou em gol do atacante loiro. Mas os fortineros viraram para um inapelável 5-1 em noite mágica na qual Chilavert marcou não só uma, mas duas vezes. De falta, onde a bola bateu no ângulo antes de entrar, virou o placar. Minutos depois, converteu um pênalti, para o desespero do goleiro oponente, o desafeto Carlos Navarro Montoya. Maradona ainda seria expulso por reclamação.

Chilavert não poderia ter escolhido adversários melhores para sofrer seus primeiros gols em série de faltas: River (antes do meio-campo!) e Boca (em um 5-1 onde ainda marcou outro gol), ambos no Clausura
Chilavert não poderia ter escolhido adversários melhores nos primeiros gols em série de faltas: River (antes do meio-campo!) e Boca (em um 5-1 onde ainda marcou outro gol): a Albiceleste coroou o roteiro de cinema

Há vinte anos, começava a quarta rodada das eliminatórias da Conmebol para a Copa do Mundo de 1998. O Brasil não participaria, com vaga automática por ter sido campeão de 1994, com os demais nove países enfrentando-se todos uns contra os outros (uma novidade; até 1994, eram divididos em grupos), com um folgando por rodada. E os hermanos não vinham tendo vida fácil: após vencerem a Bolívia na primeira rodada, os argentinos perderam para o Equador em Quito e empataram em 0-0 com o Peru em Lima. Com quatro pontos, entraram no Monumental atrás dos seis do Equador e dos sete da Colômbia, igualados ao Chile e espreitados pelos três de Uruguai, Bolívia e Paraguai.

Daniel Passarella não convencia como técnico e havia até quem pedisse pela volta de Maradona, em fase técnica no máximo razoável no Boca. E pensar que Chilavert começou falhando naquela partida, levando gol justamente por uma falta defensável… Foi aos 26 minutos do primeiro tempo, onde apenas olhou entrar a cobrança de Gabriel Batistuta, o melhor argentino em campo e embalado por ter acabado de levantar a Supercopa da Itália com dois gols sobre o Milan dentro de Milão. Ainda no primeiro tempo, assustou com uma meia-bicicleta que passou perto do travessão e com um cabeceio perto da trave esquerda. Mas aos 42 minutos, silêncio no Monumental. O motivo, no vídeo abaixo.

Burgos não precisou esticar-se tanto para chegar na bola, mas deixou que ela o encobrisse. El Mono, que nunca convenceu totalmente na seleção, vinha de atuação elogiada nos 0-0 em Lima, logo esquecida. Teve de dar muita explicação: “sei como chuta Chilavert, e também supus que ia atirar no primeiro pau. Por esse motivo, armei uma dupla barreira. Desgraçadamente, estava meio encoberto, e então não vi bem a bola. Quando quicou, me veio pelo meio. Esse quique e a visão ruim me mataram. Esse gol nos chocou e sentimos o impacto. Até esse momento, estávamos dominando o jogo quase com comodidade. Depois, não pudemos desequilibrar”.

Chilavert mal se permitiu comemorar, logo voltando às suas traves desguarnecidas (o que Batistuta e Guillermo Barros Schelotto faziam na barreira quando poderiam estar à espreita de um possível rebote?). Finalizado o jogo, enfim se soltou, dedicando o gol “a todos que me subestimaram”. Sem falsa modéstia, gabou-se no pós-jogo que “já entrei para a história do futebol mundial, por ser o primeiro goleiro que faz gol de falta nas eliminatórias” e que “o Fiat 600 segue entrando na história e o Mercedes Benz não sei se vai continuar jogando no Boca”, uma indireta a Navarro Montoya, pois com Burgos não chegava a ter rixa (“bom sujeito, mas como goleiro, normal”, declararia em 2007).

A narração argentina, no vídeo acima, ficou famosa. “Chilavert pode te deixar no ridículo em qualquer momento”, pontuou Fernando Niembro, “mas é longe demais para chutar um tiro livre”, após ter sido rebatido: “te digo uma coisa, Niembro, não é muito longe… é para Chilavert”. Com o empate bastante sentido pelos hermanos, os comandados do brasileiro Paulo César Carpegiani fizeram novamente valer o mitológico setor defensivo que tinham na época e abusaram da retranca. Matías Almeyda foi cercado, Ariel Ortega e Hugo Morales não encontravam a bola, Christian Bassedas (colega do paraguaio no Vélez) também estava inoperante, Barros Schelotto se punha impedido e Batistuta era isolado.

O jeito foi apelar para a longa distância, com duas outras perigosas cobranças de falta de Batistuta no segundo tempo. Em uma, a bola passou pouco acima do travessão, e no finzinho a outra foi defendida por Chilavert. A postura dos alvirrubros rendeu bastante choradeira dos anfitriões após o apito final do árbitro brasileiro Antônio Pereira da Silva. “A Argentina tinha que ficar com os três pontos, porque fomos os únicos que buscamos jogo. O Paraguai se dedicou a esperar, e era só cruzarmos a metade do campo que nos paravam com falta”, declarou Ariel Ortega, que perdeu boa chance já aos 33 minutos do segundo tempo ao ser desarmado quando se preparava para dominar bola cruzada por Claudio López.

“O Paraguai entrou para fechar-se e assim fica difícil de jogar. Só se dedicaram a rechaçar, e isso nos complicou. Embora não fossem muitos os nossos avanços, creio que acabaram suficientes para demonstrar que fomos superiores, e para que o triunfo ficasse em casa”, completou Hugo Morales. “Criamos muitas situações de gol e só nos faltou tranquilidade para definir. O Paraguai quase não chegou, por isso é difícil entender esse empate” foram palavras de Javier Zanetti.

Na mesma linha, o técnico Passarella: “o resultado foi injusto. A seleção teve muitíssimo mais méritos contra o Paraguai. Tentamos sempre e fomos mais agressivos que eles, mas não tivemos sorte. Estou tranquilo porque para mim a Argentina não jogou mal. Não estou preocupado nem pelo resultado nem pelo rendimento. Acredito que fizemos um jogo inteligente, e o mais justo teria sido que ganhássemos por 1-0 ou 2-1”. As críticas dos jornais argentinos não concordaram com a visão do treinador.

Cardozo, Alcaraz e Rivarola festejam com o goleiro-artilheiro
Celso Ayala, Silvio Suárez e Catalino Rivarola festejam com o goleiro-artilheiro

“Quando uma equipe não gera reações dentro e isso se traslada imediatamente aos de fora, algo grave está acontecendo. Isso aconteceu à seleção, lamentavelmente (…). A Argentina era uma sombra de ideias. E tudo isso supera um eventual resultado. Porque se o tiro livre de Batistuta no último minuto não houvesse sido neutralizado por Chilavert, o triunfo só teria sido o tapete para esconder a verdade abaixo. (…) E nessa vez, nem se pediu por Maradona ou lançou-se cantos ou agravos dirigidos a Passarella ou a algum jogador questionado. Por isso, quando a equipe cruza a fronteira até a indiferença, algo sério ocorre”, escreveu o Clarín.

Já o La Nación teceu que “a seleção dá medo. Como se explica que o superman guarani tenha se recuperado de seu erro de cálculo no gol de Batistuta e a Argentina tenha ficado ininterruptamente desmoralizada depois do presente de Burgos? É a diferença que existe entre o que está mentalmente fortalecido e o que duvida até para fazer um passe de um metro”. Uma semana depois, Chilavert seguia nas manchetes. A justiça comum argentina “estreou” contra ele, por uma briga campal com o Gimnasia LP ainda em 1994, uma lei esportiva e o suspendeu por treze meses de qualquer atividade futebolística e, se o paraguaio não tivesse bons antecedentes, pegaria também três meses de detenção.

Não faltou quem interpretasse como uma vingança. Em meados de setembro, a saída de Chilavert do Vélez em função do sucesso, dos gols e dessa punição era dada como certa (interessaria a Carlos Bianchi na Roma), mas a sanção não se cumpriu. Naquele mesmo mês, marcou sobre Banfield e Unión pelo Apertura, seguindo no bairro de Liniers para ganhar a Supercopa de 1996 com mais um gol de falta naquele ano (curiosamente, contra os compatriotas do Olimpia). Brasileiros também foram vítimas de “golpes paraguaios” já ali, vitimados por pênaltis do arqueiro na semifinal, contra o Santos, e na final, com Chila metendo em Dida o gol da vitória sobre o Cruzeiro no Mineirão. Gols em série e vítimas brasileiras reforçaram a primeira ousadia de Rogério Ceni, já em 1997.

Só a visibilidade maior da Eurocopa explicou que a IFFHS escolhesse Andreas Köpke o melhor goleiro do mundo em 1996. Chila ganharia o prêmio de melhor jogador sul-americano. Ainda é o único goleiro a levar a tradicional premiação do jornal El País. Sua resposta à punição divulgada dias depois daquele 1º de setembro de 1996? “Se tanto machuca a Argentina que tenha convertido um gol, bem, na próxima partida vou fazer dois”. Cumpriu quase à risca, marcando outros dois gols (de pênalti) sobre a Albiceleste, em 1997 e em 2001. A Argentina é justamente a seleção que mais gols levou dele.

Encerramos com este especial as três partes de uma série. Clique abaixo para conferi-la bem como outro antecedente:

Há 20 anos, Chilavert fazia seu primeiro gol de falta

20 anos de uma nova era dos goleiros: as faltas de Chilavert, 1ª parte – o gol de 60 metros no River

20 anos de uma nova era dos goleiros: as faltas de Chilavert, 2ª parte – os dois gols no 5-1 no Boca

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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