20 anos da festa de despedida de Maradona na seleção
“Se há algo que desejo a qualquer jogador do mundo é que tenha uma partida como esta”
No dia 10 (claro) de novembro de 2001, enfim aquela impressão final de Maradona na seleção (a saída da Copa de 1994 de mãos dadas a uma enfermeira, antes do antidoping) pôde ser substituída por uma festança que ainda repercutia dali a um mês, quando o compadre Jorge El Filósofo Valdano, que sequer pisou em campo, declarava ter sido a partida que mais gozou como torcedor: “me pareceu interessante: a cada 30 segundos ocorria algo que me despertava algum tipo de curiosidade. Essa partida sozinha daria para escrever um livro sobre sociologia argentina”. Há exatos vinte anos, Maradona se despedia da seleção argentina, em uma partida contra amigos apitada por Juan Bava – a declarar, por sua vez, que “toquei o céu com as mãos. Diego me convidou para dirigi-lo em sua festa. E isso que fui o árbitro que mais o expulsou…”.
Tamanho evento transformou o Hilton de Puerto Madero em um hotel mil estrelas, na conclusão da revista El Gráfico: “o lobby do Hilton foi o paraíso para os caçadores de autógrafos. Durante algo mais de três dias, foi o bunker de Maradona, de seus famosos convidados e de inumeráveis personalidades do futebol. Assim, enquanto Jorge Valdano compartilha uma das mesas do bar com Ricardo Giusti, uma corte de guarda-costas guia Pelé até uma das saídas. Dois turistas japoneses tiram uma foto com Careca. A seu lado, o italiano Ciro Ferrara e o grupinho que trouxe da Itália – entre amigos e parentes, nunca eram menos de quatro – voltam de fazer compras com as mãos cheias.
(…)René Higuita espia o balcão do quinto piso. Passam Santilli e Macri [então presidentes da dupla River e Boca, respectivamente], nessa ordem, para ser entrevistados por Pelé em uma das suítes do hotel. Em outra mesa, a última do fundo, Michel Platini compartilha um café com Nicolás Leoz. Coco Basile, técnico da Equipe das Estrelas – faltou ao único treino que fizeram os rapazes – passa por aí totalmente sobrecarregado. ‘Fotos agora não, por favor, isto está me deixando louco’, diz, mas aceita posar com Platini. Uma mulher que acaba de fotografar-se com Davor Šuker pergunta enquanto guarda sua câmera no estojo: ‘quem é este jogador? Como se chama?'”.
As eliminatórias à Copa de 2002 ainda não haviam terminado, restando ainda a rodada final, para dali a quatro dias. Para o treino de luxo, Marcelo Bielsa ouviria muitos “Poné a Riquelme, la puta que te parió” pois simplesmente não convocava ainda o melhor jogador do país – Riquelme estaria em campo, mas do lado contrário, na escalação de Alfio Basile, técnico de Maradona naquela Copa do Mundo dos EUA: Oscar Córdoba (Fabián Carini, depois René Higuita), Ciro Ferrara, Sergio Bermúdez, Iván Córdoba (Lothar Matthäus) e Carlos Gamarra; Nolberto Solano, Juan Román Riquelme (Álvaro Recoba, depois Carlos Aguilera), Carlos Valderrama (Hristo Stoichkov) e Hristo Stoichkov (Leo Rodríguez, reserva de Diego na Copa 1994); Enzo Francescoli (Éric Cantona) e Davor Šuker (Careca).
Ainda de olho por uma chance, o futuro desafeto Riquelme foi político enquanto recebia no gramado dicas de Maradona sobre como enfrentar dali a algumas semanas o Bayern Munique no Mundial Interclubes: “La Bombonera é a casa de Diego, não a minha. Eu me conformo com que as pessoas gostem de mim. Jogar esta partida foi cumprir um sonho”.
Quem de fato jogou pela Argentina naquela tarde foi Lucas Castromán, atacante reserva da Lazio (bastante lembrado por empatar em 2-2 aos 50 minutos do segundo tempo um clássico no primeiro semestre com a Roma logo campeã) que marcaria ali seu único gol vestido de Albiceleste, além de outros dois nomes que igualmente ficariam de fora da Copa 2002 – Eduardo Berizzo e Julio Cruz. Curiosamente, dois dos ausentes na Ásia estão na foto que abrem a matéria, em que El Diez é rodeado por Claudio López, Cruz, Castromán, Claudio Husaín (El Turco era na época o representante argentino no Napoli e simbolicamente é quem carrega o ídolo-mor dos celestes) e um Stoichkov que aparentemente encobre Mauricio Pochettino.
No mais, além de Riquelme e das ausências ofensivas de Gabriel Batistuta, Hernán Crespo (ambos já poupados do compromisso anterior nas eliminatórias, em 7 de novembro, com a classificação assegurada com tanta antecedência) e Ariel Ortega, Bielsa usou seus principais nomes – como a ocasião pedia: a Argentina formou com Germán Burgos (Pablo Cavallero), Javier Zanetti (Castromán), Roberto Ayala (Pochettino), Walter Samuel (Berizzo) e Juan Pablo Sorín (Diego Placente), Matías Almeyda (Husaín), Juan Sebastián Verón (Cruz), Pablo Aimar e Maradona; López e Kily González. Dos convocados que não entraram em campo, ao menos Marcelo Gallardo apareceu na foto acima, bem como Osmar Ferreyra. Ferreyra, curiosamente, nunca na vida entraria em campo pela seleção principal, apenas pelas juvenis.
Mais sensíveis que o treinador foram os europeus, embarcados do outono vigente em seu Trópico para se deslumbrarem com o calor de Buenos Aires para além da sensação térmica ardente do fim de ano no Trópico inverso: “a festa das pessoas foi impressionante. Poucas vezes vi um espetáculo tão bonito” (Cantona), “levo esta festa na alma. Me impressionou a devoção das pessoas por Diego, foi comovente” (Matthäus, que retribuía a visita que Maradona lhe fizera no próprio jogo-despedida do alemão, no ano anterior, ocasião em que Diego defendeu o Bayern) e “estou orgulhoso de ter estado aqui. Foi uma festa impressionante que não esquecerei jamais” (Šuker) foram algumas aspas que saíram na revista El Gráfico pós-jogo.
Estatisticamente, Claudio López abriu o placar aos 16 e Šuker (que voltava à Bombonera após visita-la pelo Sevilla em 1992, no amistoso em que Dieguito jogou um tempo pelos andaluzes, seus empregadores na época, e outro pelo Boca) empatou aos 29 para os 50 mil presentes em La Bombonera. Após um primeiro tempo econômico, a torneira da festa abriu no segundo: Aimar 2-1 aos 5, Maradona convertendo pênalti para os 3-1 os 16, Castromán decretando o 4-1 aos 30, Cantona descontando para 4-2 aos 34, Aimar respondendo com o 5-2 aos 42 e o goleiro-artilheiro Higuita diminuindo novamente aos 44 para 5-3. O dono da festa, então, converteu outro pênalti aos 48. Pois, segundo um dos bandeirinhas, Luis Olivetto (Francisco Lamolina foi o outro), “foi gol de Diego? A festa terminou espetacular? Então foi pênalti. E cada repetição que vejam será mais pênalti ainda”.
Além dessas aspas de Olivetto, aquela El Gráfico registrou ainda, sobre o desempenho objetivo de Maradona em campo, que teria se saído com 72 passes certos, 32 passes errados, zero faltas cometidas, duas faltas recebidas, cinco chutes a gol, quatro chutes desviados e um defendido, três escanteios cobrados. Já o desempenho subjetivo foi outra coisa e comoveu a própria revista brasileira Placar, a republicar uma versão editada do conto assinado por Eduardo Verona para aquela El Gráfico. Reproduzimos abaixo a íntegra da versão brasileira, acrescendo em colchetes os trechos suprimidos que fizeram mais falta.
“Quando às 16h07 sua silhueta inconfundível surgiu na boca do túnel, todos comprovamos o que queríamos comprovar: o sonho não acabou.
Ele estava em seu cenário. Em seu território. A bola, o campo, o jogo, os amigos. E o povo. Seus pais, don Diego e dona Tota, os verdadeiros artesãos da criatura. Suas filhas Dalma e Giannina com o uniforme da seleção e emocionadas com tamanha demonstração de afeto; Guillermo Cóppola, o empresário, adivinhando cada gesto e cada expressão de Diego, e a mulher Claudia Villafañe de Maradona, também de azul e branco, enxugando lágrimas o tempo todo.
De um lado, a Seleção de Bielsa, do outro o time de estrelas orientadas por Coco Basile. Os de 20 e os de 40 anos. Os Riquelme e os Maradona. A torcida jogou com ele no grito das arquibancadas, nas gozações a Pelé – com seu sorriso pasteurizado e perfil de político em campanha -, nos pedidos por Riquelme na seleção.
E Diego no centro do campo. Os olhos sensíveis. O olhar para o céu. A garra intacta. E as lembranças galopando em todas as direções. O gesto obsceno na final contra a Alemanha na Copa de 90, quando vaiaram o hino no Olímpico de Roma. As lágrimas de dor e raiva pela Copa do Mundo que deixaria a Argentina por causa do pênalti que o mexicano Edgardo Codesal presenteou aos alemães. O golaço contra o Brasil em Turim, quando Caniggia deu o toque final a uma jogada majestosa de Diego. O pênalti contra a Itália, em Nápoles. A bomba terrível contra a Grécia, nos EUA, em 1994. O partidaço contra a Nigéria. A loura gordinha que foi busca-lo para o antidoping, que marcou uma de tantas mortes e ressurreições.
Quando Juan Bava apitou, começou a contagem regressiva. A que Diego não queria. Porque na verdade ninguém a queria. Por isso, no fim, no placo improvisado no meio do campo, disse o que qualquer um podia sentir: ‘tanto tempo esperando essa partida e já terminou’.
La Brujita Verón foi seu grande compadre no primeiro tempo. Passe de lá, passe de cá. Nessa dinâmica, se observou outra homenagem. Era o gosto de sentir-se perto. De estar ao lado. De protagonizar uma breve aventura com final em aberto. O outro dez, aclamado pelos torcedores, estava do outro lado: Juan Román Riquelme, diamante consagrado do futebol argentino. O rosto de Román era a síntese absoluta da jornada histórica. Seu frescor, sua admiração explícita por Diego, a candura, a extraordinária inocência.
[E o espírito do futebol ganhando por goleada. Um cruzamento de Diego desde a lateral direita e com perna direita para que El Piojo López se elevasse, metesse a cabeça e cravasse o 1-0 frente à resistência do colombiano Oscar Córdoba. Um canhotaço preciso de Davor Šuker pôr o 1-1 no segundo pau, apesar do voo inútil do Mono Burgos. A busca de Francescoli para meter uma tabela que não saiu, a qualidade apreciada do Pibe Valderrama para meter algumas punhaladas em diagonal, as ganas de Stoichkov de ganhar o fundo pela faixa esquerda…]
O intervalo durou uma eternidade: 33 minutos. Diego outra vez em campo. Muitas mudanças muitos gols e uma emoção que em forma progressiva foi subindo até as portas do delírio. [Esburacou Aimar o segundo e logo] Cruz forçou um penal. René Higuita no gol [Um grande no arco. Porque Higuita demonstrou a partir de sua trajetória, seu estilo e sua eficiência que é um dos poucos mestres da função]. E Diego foi para a bola. Quem mais iria? O canhota mansa. O gol. [O abraço sincero com Higuita. A cara de Diego e a cara das pessoas. Para verificar os labirintos da paixão. Aí, frente a frente. Para ver todas as cicatrizes. As lágrimas compartilhadas. Os olhos que não mentem. A camisa do Boca que se deixa ver debaixo da celeste e branca. O anúncio de outras emoções muito fortes que ainda teriam que instalar-se].
Até que uma voz popular e muito sensível ao coração e à música xeneize (apelido do Boca) se ouviu em La Bombonera: ‘Jugá con la de Boca… jugá con la de Boca…‘. Diego não se fez de rogado. No meio do campo, tirou a camisa da Seleção, enrolou-a na mão direita e cedeu ao sentimento boquense. Nas costas, se liam ‘Román’ e o número dez. ‘Não era para ofender ninguém, fiz para retribuir ao povo o que ele me deu’. Em suas palavras não havia populismo, e sim gratidão.
Os últimos capítulos foram de altíssima emotividade. Às 18h18 o jogo foi interrompido. Diego foi carregado até as gerais pelos jogadores da seleção e rompeu em pranto. Outra vez a química entre o ídolo e seu povo. [A alquimia perfeita. A comunhão indestrutível. Pareceu que nesse instante de fogo se consumia a tarde. Mas havia um brinde. Mais gols. Antes, um de Castromán, outro do francês Cantona com um canhão imparável, um de Aimar e outro de pênalti a cargo de Higuita, ovacionado por seu carisma e atrevimento. Estavam 5-3]. Mas faltava algo. Faltava o final da obra. Pênalti. E novamente Diego. Canhota suave, gol, outro abraço com Higuita. Eram 18h33. O céu estava mais perto. Maradona trouxe para campo suas filhas e seus sobrinhos. Uma volta olímpica muito especial. A cada passo, uma ovação para derreter a alma. [A cada passo, uma oferenda para testemunhar o amor].
‘É demais. Demais para uma pessoa, para um jogador de futebol’, afirmou, entre soluços. Depois, soltou um mea culpa generoso e comovente que também arrancou aplausos dos jogadores convidados. ‘Eu me equivoquei e paguei, mas não se mancha a bola de futebol. Quero pedir aplausos para estes jogadores que estiveram aqui. O futebol é o esporte mais lindo do mundo. O fato de alguém ter errado não quer dizer que o futebol tenha que pagar’. Ficou a sensação de que não queria abandonar a trepidante Bombonera. Que a tarde de 10 de novembro de 2001 teria que ser congelada no tempo. [A magia do futebol. Mas também por sorte a magia que supera o futebol]”.
O editorial da revista, assinado por sua vez por Carlos Poggi, sintetizou bem tudo ao referir-se ao já clássico discurso La Pelota No Se Mancha: “tão certo como o respeito e a admiração que soube ganhar da parte de caras como (…) Marcelo Bielsa, que suportou milhares de insultos mas foi capaz de rir e desfrutar com as pinceladas de seu engenho. Isso semeou o Maradona jogar. Isso colheu o ídolo que vencerá o tempo.”
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