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15 anos sem o símbolo máximo do futebol do Ferro Carril Oeste: Gerónimo Saccardi

No futebol do Ferro Carril Oeste, Carlos Griguol foi o único técnico campeão na elite – e duas vezes. Oscar Garré, presente em ambas as conquistas, foi o recordista de jogos e único que, como jogador verdolaga, venceu uma Copa do Mundo (em 1986). Outros tantos também foram bicampeões, com destaque ao talentoso meia Alberto Márcico. O clube revelou craques de renome para além da Argentina, como Bernardo Gandulla, Antonio Roma, Silvio Marzolini, Germán Burgos e Roberto Ayala. Mas é válido cravar Gerónimo Saccardi, presente em “só” um dos dois títulos na elite, como nome máximo do futebol do bairro portenho de Caballito. El Cacho, único a brilhar como jogador e técnico por lá, faleceu há quinze anos.

O ex-volante Cacho Saccardi, líder e lutador que sabia ter boa técnica no passe e cabeceio, nasceu em 1º de outubro de 1949 em Buenos Aires. Foi descoberto no clube Crisal em seu bairro de Pompeya, junto com Carlos Goma Vidal, outro futuro ídolo em Caballito. A estreia profissional, após trabalhar vendendo jornais das 5 às 9 da manhã para depois treinava nos juvenis e então trabalhar numa fábrica, veio pouco depois dos 19 anos, em 22 de março de 1969. O time havia sido rebaixado no ano anterior e naquele dia enfrentou o El Porvenir pela quarta rodada da segunda divisão. Terminou adiante campeã da segundona, mas sem coroa: entre 1967 e 1970, simplesmente nem mesmo o líder da divisão inferior tinha acesso garantido!

A AFA, em benefício das equipes mais tradicionais, forçava uma miniliga envolvendo os melhores da segunda divisão com os piores da elite, prejudicando os campeões das segundonas de 1967 (Defensores de Belgrano, que até hoje nunca jogou na elite profissional e era treinado pela lenda Ángel Labruna), 1968 (Almagro, onde jogava o futuro maior artilheiro do campeonato francês, Delio Onnis) e 1969. O Ferro precisou joga-la novamente em 1970. Foi novamente campeão e enfim confirmou o acesso após liderar o quadrangular-repescagem. Pior para o vice Almirante Brown, lanterna nele e outro que jamais esteve na elite profissional.

Não que tenha sido fácil. A bagunça imperava na própria fórmula da segundona em si: havia um primeiro turno entre dezesseis equipes, com a metade superior se classificando ao turno “definitivo”. Historicamente um clube “com” futebol e não “de” futebol, o poliesportivo Ferro não dedicava muitos pesos à bola no pé e a solução buscada pelo técnico Mario Imbelloni (ex-Real Madrid) foi apostar na base. O início foi irregular e nada empolgante à torcida. Mas o clube conseguiu se classificar exatamente em oitavo. Para, no turno “definitivo”, ganhar cinco dos sete jogos.

Nos 110 anos do Ferro, foi colocado no centro e no mais alto. Entre o técnico Griguol, o meia Márcico, Hugo Conte (vôlei) e Miguel Cortijo (basquete)

Na miniliga, sapecou 3-0 no favorito Colón em plena Santa Fe, 3-1 no Almirante e 4-1 no Quilmes, rebaixado para o choro de seu jovem goleiro chamado Ubaldo Fillol (consolado por outro futuro campeão da Copa de 1978, o armador Ricardo Villa). Saccardi, completando 21 anos no fim da maratona, foi nela titularíssimo, sendo o recordista verdolaga de jogos na campanha: 34 partidas, ainda como lateral-direito. Na temporada seguinte, um ótimo 7º lugar no retorno à elite, a um ponto do gigante River.

Saccardi e o Ferro bambearam em 1972 e em 1973. Foram antepenúltimos no primeiro, precisando jogar uma repescagem, e lanternas no outro, só escapando porque naquele ano não houve rebaixamento. Saccardi já não era tão titular e esteve para ter o contrato rompido, algo que o presidente verdolaga Leyden relevou por conhecer a situação pessoal do jogador: havia acabado de virar pai e resolveu renovar-lhe por um ano para, pelo menos, angariar alguma reserva financeira. Bondade presenteada com uma história bem diferente em 1974. O técnico era Victorio Spinetto, com história por Atlanta e, sobretudo, no clássico rival Vélez.

Com reforços bons e baratos, o clube foi segundo em seu grupo no Metropolitano (dividido em duas chaves) após bater por 2-1 o Estudiantes em La Plata. A segunda colocação foi dividida com o Boca, forçando um desempate emocionante, com vitória por 1-0 dos auriazuis e reconhecimento geral das duas torcidas aos raçudos de Caballito, que jogaram com homens a menos por expulsões e lesões. Saccardi já era descrito como “líder espiritual” do grupo. O embalo foi mantido para o Torneio Nacional, com o Ferro classificando-se ao octagonal final. Terminou em uma honrosa 5º colocação, com Saccardi marcando de peixinho o gol da vitória por 3-2 sobre o Rosario Central de Mario Kempes, em Rosario.

O reconhecimento veio também da seleção. Saccardi esteve nas primeiras convocações pós-Copa do Mundo, também as primeiras do ciclo de César Menotti – inicialmente, em jogo não-oficial contra um combinado da dupla Boca & River, em 29 de agosto (2-2). Seus jogos oficiais foram dois, somando entre eles 91 minutos; foram ambos contra o Chile, pelo torneio binacional Copa Carlos Dittborn: 2-0 em Santiago em 7 de novembro e 1-1 em Buenos Aires no dia 20; entre esses dois jogos, esteve em outra partida não-oficial, um 4-2 no qual até gol marcou, contra o Lanús, no dia 16. No ano seguinte, o volante foi vendido ao futebol espanhol e na época ir à Europa mais atrapalhava do que ajudava a manter-se na seleção.

Com o amigo de infância Carlos Vidal após a derrota de muito suor para o Boca em 1974; em outra disputa direta com o Boca, pelo título de 1981; e seu busto, inaugurado hoje no estádio verdolaga

O Hércules de Alicante formava uma legião argentina, que incluía dois membros do Independiente (por sinal, o time de coração de Saccardi) ultracampeão da Libertadores na época, o goleiro Miguel Ángel Santoro e o defensor Eduardo Commisso. Os alviazuis conseguiram suas duas melhores campanhas na elite de La Liga, com o quinto lugar em 1975 e o sexto em 1976. Saccardi ficou até 1979 no clube, e inclusive enfrentou a Argentina em 8 de julho de 1976 por uma seleção B que incluía outros jogadores que atuavam fora do país, derrotados por 4-0. Na sua ausência, o Ferro havia voltado a cair, recém-voltando à elite no fim de 1978. Saccardi regressou da Espanha para o bairro de Caballito e retribuiu o favor de quando virava pai: recusara oferta mais vantajosa do Boca, que além do poderio histórico era bicampeão da Libertadores.

“Quando saí, o presidente Leyden me havia dito que se voltasse, escutasse sua oferta. Bom, o Boca foi me buscar e lhe liguei. Lhe disse o que me ofereciam e me respondeu: ‘está bem, não há problemas, vá porque isso nós não podemos te pagar’. Mas escolhi o Ferro porque não me esquecia daquele gesto que tiveram comigo quando recém-começava”, confessou El Cacho anos depois, já como técnico. Com ele de volta, o Ferro quase avançou aos mata-matas do Nacional. Ficou em 3º, caindo nos critérios de desempate para o futuro vice-campeão Unión. Mesma posição no Nacional de 1980, dessa vez a dois pontos do Independiente.

O grande ano parecia ser 1981. O clube foi vice “apenas” do Boca de Maradona (por um único ponto, com a imagem ensaguentada de Saccardi no duelo direto virando ícone), no Metropolitano, e do River de Kempes, no Nacional, com direito a eliminar nas semifinais o rival Vélez, que repatriava o superartilheiro Carlos Bianchi (artilheiro do torneio). Prenúncio do verdadeiro grande ano: em 1982, não teve para ninguém. Não mesmo. O time não só foi campeão, como foi de forma invicta, algo só logrado duas vezes até então no profissionalismo (ambas pelo San Lorenzo, em 1968 e 1972) – e jogando um futebol vaiado na época como chato de assistir, mas indecifrável para os grandes e devastador para os pequenos, e sem necessidade de artimanhas catimbeiras.

Saccardi esteve nas 22 partidas da campanha campeã, que rendeu até recorde sem sofrer gols ao goleiro verdolaga (1.075 minutos) Carlos Barisio, e ainda deixou um gol em um 4-0 no Independiente em Avellaneda. Outro goleado em casa por 4-0 foi o forte Talleres da época, e o rival Vélez também apanhou pelo mesmo placar. O título inédito foi a despedida perfeita para tanta fidelidade: Saccardi, que sofria com artrose no joelho direito, pendurou as chuteiras ao fim do ano seguinte, depois de um empate com o Huracán em 22 de dezembro. O time ficou a dois míseros pontos da dianteira do Torneio Metropolitano, vencido pelo Independiente. Pena: por um semestre, o ídolo não figurou no segundo título do Ferro, o Nacional de 1984. Voltou somente em 1996, como técnico. E o cenário era bem diferente…

Se nos anos 80 o Ferro viveu uma festa premiada até pela UNESCO em 1988, somando no futebol mais títulos que o Vélez e logrando conquistas internacionais no basquete, vôlei e outros esportes, nos 90 a decadência veio rápida após a saída em 1992 do histórico presidente Leyden. Simbolicamente, em 1993 o Vélez igualou o número de títulos argentinos e saltou meteoricamente nos troféus de futebol. Em 1996, o rival era bi seguido no campeonato argentino enquanto o Ferro escapou só na última rodada do rebaixamento, graças a uma vitória de virada sobre o Huracán e uma combinação de resultados. Saccardi era o técnico na emergência, em dupla com o ex-colega Garré.

A dupla acabou chamada para substituir Héctor Cúper no Lanús. Cúper, ex-colega deles naquele Ferro de 1981, havia levado os grenás ao título na Copa Conmebol e a boas campanhas no campeonato argentino e foi reproduzir a experiência no Real Mallorca. Novamente, o coração pesou mais que a razão ao Cacho: só Garré saiu. E emoções não faltaram. No Apertura 1997, os comandados buscaram no último minuto um empate em 3-3 após estarem perdendo de 3-0 no clássico com o Vélez. No Apertura 1998, veio a última vitória no Clásico del Oeste, um 2-1 que interrompeu uma série de jogos sem vitórias. E um 4-1 no Boca no qual a temida e fanática La Doce deixou as arquibancadas antes do fim, algo sem precedentes.

Saccardi saiu ao fim da temporada 1998-99, apenas porque quis: foi fiel aos jogadores que, buscando outro 3-3 após outra derrota parcial de 3-0 (para o Independiente dentro de Avellaneda), vinham lhe bancando em tempos tão ruins. Chegou a ser sondado por seu outro ex-clube, o Hércules, mas acertou com o Gimnasia de Jujuy. Sem El Cacho, a coisa desandou de vez em Caballito. O clube terminou rebaixado na temporada 1999-2000, com direito a um 6-1 sofrido para o Vélez com três gols de José Luis Chilavert (talvez a única tripleta de um goleiro na história do futebol). Não só não voltou mais à elite como logo foi imediatamente rebaixado pela primeira vez à terceira divisão.

O Ferro não saiu da terceirona ao fim da temporada 2001-02. O que pode ter influído no coração de Saccardi. Parou de bater naquele 4 de maio de 2002, quando el más grande de todos, na definição do livro oficial do centenário verdolaga, jogava uma partida de tênis em um sítio. Foram 399 partidas como jogador de Caballito e 44 gols. Seu aniversário virou o dia internacional do (sofrido) torcedor do Ferro. Em 2014, quando o clube celebrou 110 anos, não teve dúvidas em coloca-lo como destaque central de cinco ícones poliesportivos da instituição. Na ocasião, o Futebol Portenho elegeu o time dos sonhos do Ferro e El Cacho obviamente foi incluído. O ídolo sobrevive como busto a ser inaugurado hoje no estádio Arquitecto Ricardo Etcheverry e nesta página-tributo no Facebook.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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