Se o Brasil recebeu oficialmente o futebol em 1894, por Charles Miller, na Argentina o esporte bretão chegara algumas décadas antes – tanto que, naquele ano, já se realizava a terceira edição de um campeonato argentino. O ano-marco para os vizinhos é 1867, quase trinta antes, em razão da comunidade britânica lá presente ser bem mais numerosa.
Procurando preservar seus hábitos culturais, os vitorianos organizavam-se em associações, escolas, clubes… um destes foi o Buenos Aires Cricket Club, criado em 8 de dezembro de 1864 para, como indicado no nome, a prática do críquete, tão bretão quanto. O futebol moderno ainda era um esporte em formação: suas regras haviam sido definidas justamente no ano anterior, quando clubes ingleses fundaram a primeira Associação de Futebol. Mas football permaneceria por um tempo a poder significar também a modalidade popularizada pela escola de Rugby, em que os pés não eram tão usados quanto as mãos (poucos sabem que ela chegou ao Brasil pelo mesmo Charles Miller, junto com o futebol).
Em junho de 1867, sócios do Buenos Aires CC organizaram então o primeiro jogo de futebol na Argentina. Como a comunicação intercontinental estava longe de ser instantânea como hoje, o jogo praticado era uma mistura do Rugby Football com o Association (de onde surgiu, ainda na Grã-Bretanha, a abreviação soccer) Football – isto é, o “futebol de Rugby” com o “futebol da Associação”, que só no século XX viraria sinônimo do próprio termo na maior parte do mundo (com exceções normalmente nos países onde o rúgbi ou derivados se fez mais popular).
De qualquer forma, a novidade ganhou adeptos e, em 9 de agosto, estava fundado o Buenos Aires Football Club, a funcionar na mesma sede da instituição-mãe, no bairro portenho de Palermo. Era apenas dez anos mais novo que o Sheffield Football Club, o mais antigo do mundo. As cores são as mesmas da bandeira do Reino Unido e o distintivo leva o característico leão rampante adotado por ingleses e escoceses, inspirando futuramente a seleção argentina a também adotar um felino no escudo.
Em 1871, foi a vez da primeira União de Rúgbi, também na Inglaterra, ser criada. Com regramentos definidos para cada variação de football, o BAFC decidiu por adotar os da bola oval, em assembleia em 7 de maio de 1874. Como a palavra continuava a designar ambas as modalidades boleiras, o nome do clube não foi alterado, assim como muitos dos primeiros times de rúgbi do mundo. O caso mais célebre provavelmente é o do Barbarian FC, equipe que reúne os melhores jogadores do planeta para amistosos festivos, muitas vezes contra seleções. Ser convidado para ele é um grande prestígio para todo rugbier.
Outros bons exemplos são o último campeão inglês, o Harlequin FC – fundador tanto da Associação de Futebol quanto da União de Rúgbi, por sinal -, bem como o campeão antecessor, o Saracens FC, e igualmente o bivice Leicester Tigers, bicampeão seguido antes destes dois, cujo nome oficial é Leicester FC. Há também os que adotam a nomenclatura RFC para si, como fazem Bath, London Irish, London Welsh, Northampton Saints, Sale Sharks e Worcester Warriors, na elite inglesa; assim como alguns de futebol ainda se definem como AFC, como o Sunderland, Swansea City, Hull City e Leeds United, nas primeiras divisões inglesas.
Curiosamente, 1867 foi também o ano de criação do Rosario Cricket Club (em 27 de março), que posteriormente originaria o Rosario Athletic Club (atualmente, Club Atlético del Rosario), a ser o primeiro rival do Buenos Aires. Ambos começariam a duelar anualmente a partir de 1886, em eventos que configuravam em confraternizações da comunidade britânica, com direito a uísque e tortas preparadas pelas damas presentes na plateia.
Em 1891, o primeiro campeonato argentino de futebol foi realizado, sendo até o mais antigo do mundo fora do Reino Unido. Como fora o pioneiro, o Buenos Aires participou, juntamente com Belgrano FC, Buenos Aires and Rosario Railway, Old Caledonians e St. Andrew’s, que seria o campeão. O BAFC terminou em último, com apenas uma vitória em seus oito jogos, perdendo os demais, marcando 6 vezes e levando 23 gols. Foi o epílogo do futebol no clube, voltado de vez para o rúgbi.
De fato, o Buenos Aires passou o restante da década procurando formar um campeonato de rúgbi. As disputas teriam de se resumir a “norte contra sul”, “ingleses e descendentes contra irlandeses e descendentes”, “escoceses e descendentes contra galeses e descendentes” e afins. Até que, em 1897, o rúgbi chegou a Belgrano Athletic e Lomas Athletic, duas instituições que já jogavam futebol, onde este último era o grande campeão da época.
Um dos principais jogadores do Lomas era James Oswald Anderson, artilheiro do campeonato de 1896. Falamos dele aqui dias atrás, uma vez que ele esteve por trás dos primeiros jogos da seleção argentina de futebol. Anderson também era sócio do BAFC e, na assembleia de 1898, sugeriu enfim um campeonato entre os clubes que jogavam rúgbi.
A proposta só seria aceita na assembleia do ano seguinte, mas três dias depois desta já se formava, em 10 de abril, uma comitê organizador, embrião do que hoje é a União Argentina de Rúgbi. E, em julho, o torneio inaugural já estava terminado. Reuniu o Buenos Aires, o Belgrano, o Rosario, o Lomas e o Flores Athletic. Poderia ter contado também com o Montevideo Cricket Club, pioneiro no futebol e rúgbi uruguaios; afinal, o nome da atual UAR era União de Rúgbi do Rio da Prata. Este, porém, recusou. Aliás, ele e o Buenos Aires realizaram em 15 de agosto de 1889 o primeiro jogo de futebol entre argentinos e uruguaios.
O Lomas foi o primeiro campeão, mas, a partir do ano seguinte, de 1900, o BAFC emendaria um pentacampeonato seguido, o que lhe daria o direito de ter a taça da época em definitivo para si. Em ato de cavalheirismo, recusou, declarando que só faria questão de guardá-la se as disputas de rúgbi, um dia, terminassem. Ao fim da primeira década do século XX, ainda logrou um bi seguido em 1908 e 1909, sendo a base da seleção argentina quando esta foi reunida pela primeira vez, em 1910. Acabou decaindo desde então, só tendo faturado o campeonato mais três vezes, até hoje – o último, em 1959.
Na verdade, o Buenos Aires FC, rigorosamente falando, não existe mais. Em 1949, um incêndio na sede que dividia com o Buenos Aires CC levou consigo bens materiais que incluíam boa parte da documentação histórica conjunta deles. As duas instituições, que formalmente eram separadas, decidiram então unir-se oficialmente, formando o atual Buenos Aires Cricket & Rugby Club.
O BACRC herdou o passado de BACC e BAFC e mantém-se ainda hoje nas disputas de rúgbi, e bem distante do futebol que há 145 anos trouxera à Argentina. Houve mudança também na sede, deslocada inicialmente para a cidade de Don Torcuato, e depois para a de San Fernando. Nesta, existe também o Club San Fernando, outro a se aventurar nos dois esportes: atualmente no rúgbi, chegou a ser campeão da 3ª divisão de futebol em 1918 e a fornecer alguns jogadores à seleção nos anos 20, quando já estava na elite. Deixou a bola redonda com a instalação do profissionalismo (ainda não aceito no rúgbi argentino) nela, no início dos anos 30.
Este especial é também um aperitivo para uma rápida retomada do Futebol Portenho sobre o rúgbi argentino, após termos lançado dez em meio à Copa do Mundo de Rúgbi ano passado – ver aqui. Daqui a nove dias, em 18 de agosto, a seleção joga pela primeira vez no torneio que reúne as principais forças do hemisfério sul, em competição travada desde 1996 por África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, precisamente as maiores vencedoras da Copa (todas são bicampeãs). O antigo Três Nações passará a virar Quatro – oficialmente, Rugby Championship.
Aguardem, então, pela história dos Pumas!
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Excelente matéria! Nem sites argentinos tem esta qualidade de matéria histórica. Parabéns e muito obrigado!
Nós é que agradecemos, Ernesto, pelo prestígio e elogios, ainda mais pelo texto pontuar bem mais acerca de um esporte (infelizmente) não tão enraizado entre os brasileiros do que propriamente pelo futebol.
Há cerca de um ano, iniciei minha participação como colaborador do FP exatamente com uma outra matéria sobre o Buenos Aires. Ambas se complementam: https://www.futebolportenho.com.br/2011/09/16/futebol-e-rugby-parte-1-o-buenos-aires-cricket-and-rugby-club/ Foi para iniciar uma série destinada à trajetória futebolística de alguns dos principais times de rúgbi argentinos, no embalo da Copa do Mundo da modalidade.
Muitos chegaram a ser campeões ou vices do campeonato argentino de futebol. Se bateu a curiosidade de saber mais de alguns que chegaram a ser mencionados na matéria - Belgrano, Lomas, Atlético del Rosario, St. Andrew's -, cada um destes e outros receberam um especial para si, reunidos aqui: https://www.futebolportenho.com.br/especiais/rugby/
Grande abraço!