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110 anos dos primeiros duelos de brasileiros com a seleção argentina

Em 13 de setembro de 2013, relembramos os 105 anos da estreia oficial da camisa alviceleste na seleção argentina. Se hoje enverga manto tão icônico, nos seus primórdios a Albiceleste chegou a usar até, “heresia”, uma camisa toda celeste – ainda que antes dessa cor ser adotada pelo Uruguai. Mas a rigor as cores características da Argentina já haviam sido suadas antes. No mês de julho, os hermanos as usaram justamente nos primeiros duelos marcados com outros vizinhos, os do Brasil. O primeiro desses encontros, histórico por essas duas razões, completa hoje 110 anos.

Por que então não foram oficiais? Porque a rigor a Argentina não enfrentou contra os brasileiros uma outra seleção, e sim diversos combinados.

Os dois primeiros jogos, por exemplo, foram contra os jogadores considerados “estrangeiros” (alguns na realidade nascidos no Brasil, mas filhos de imigrantes) do campeonato paulista, dentre eles o “patriarca” Charles Miller, para na terceira exibição em São Paulo duelar contra os “nativos”. Depois, viriam mais três jogos, no Rio de Janeiro – o primeiro contra “nativos”, o segundo contra “estrangeiros” e um terceiro contra um misto deles. O nascimento da seleção brasileira, em 1914, viria justamente na primeira vez em que paulistas e cariocas jogaram juntos, embora houvesse jornal que retratasse o encontro de 110 anos atrás já como um “Brasil x Argentina”.

Na época, o futebol argentino ainda era dominado pela comunidade britânica, cujos clubes venceram todos os torneios realizados entre 1891 e 1912. O principal time do período foi o Alumni, com dez títulos, e que chegou a fornecer de uma vez oito jogadores à seleção. A simbiose era tamanha que o próprio uniforme do clube vez ou outra era adotado pela Argentina – calças e meias negras e camisas listradas, mas nas cores alvirrubras.

Acréscimo em 2023: versão colorida de Pablo Keservan para a foto que abre essa matéria. Naqueles tempos, o goleiro (Cambpell, primeiro uniformizado em pé) ainda não usava camisa diferenciada

Foi para homenagear o Alumni (que até hoje, mais de cem anos após deixar o futebol competitivo, em 1911, só foi superado exatamente pelos “cinco grandes” – Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) que o Estudiantes adotou a mesma combinação em seu uniforme.

O prestígio era tamanho que o Alumni, indiretamente, também fez o Uruguai enfim adotar a também icônica camisa celeste com calças e meias negras: o River Plate uruguaio existente na época (mais antigo que o argentino e sem relação com o River uruguaio atual) usou essa combinação de improviso no dia em que derrotou o Alumni, pois seu uniforme era semelhante. O clube vinha de um tricampeonato seguido e não por acaso foi a base daquela excursão da seleção.

O Alumni forneceu oito jogadores, seis deles da lendária família Brown, composta pelos irmãos Jorge, Carlos, Alfredo, Ernesto e Eliseo e pelo primo Juan. Somente Juan e Carlos não foram artilheiros do campeonato argentino. Além deles, viajaram William Campbell e Patricio Browne. O rival do clube era o Belgrano Athletic, por sua vez vencedor dos três únicos campeonatos que o Alumni não conquistou entre 1899 e 1909. O Belgrano inclusive seria o campeão argentino de 1908 e forneceu George Scholefield, Arthur Morgan, Carlos Dickinson e Frederick Dickinson.

Por fim, os demais clubes representados foram o Estudiantes de Buenos Aires (Roland Lennie, o único não nascido na Argentina, e Maximiliano Susán, depois também jogador do Alumni) e o San Isidro (Luis Vernet Amadeo, Lucio Burgos Castelli e Ricardo Malbrán), que chegaram a vice-campeonatos em meio àquele duopólio.

Alumni campeão de 1910, repleto de membros da partida de 110 anos atrás: Patricio Browne, Alfredo Brown, George Scholefield, Jorge Brown, Arturo Jacobs e Juan Brown; Guillermo Hardie, Ernesto Brown, Arnoldo Watson Hutton, Gottlob Weiss e Juan Lawrie

Nunca ouviu falar de nenhum? Todos ainda existem, mas o rúgbi passou a ser o esporte bretão praticado por Alumni, Belgrano e San Isidro – que inclusive se dividiu nos dois maiores campeões portenhos da bola oval, o CASI e o SIC. Já o “outro” Estudiantes de fato decaiu, habituando-se à terceira divisão de futebol, onde revelou Lavezzi. Na época em que era forte, viria a ser o primeiro clube argentino a excursionar no Brasil, em 1910.

Os argentinos deixaram Buenos Aires em 27 de junho a bordo do navio Amazon, chegando ao porto de Santos três dias mais tarde. No mesmo 30 de junho, se dirigiram à capital para uma recepção de gala, com direito a buquês com laços nas cores das bandeiras dos dois países para as esposas dos visitantes. Em 2 de julho de 2018, então, o Correio Paulistano anunciou com pompa na coluna de Sport:

Foot-ball – S. Paulo vs. Argentina – Finalmente chegado o dia da primeira prova entre os jogadores de S. Paulo e os da Argentina. Logo à tarde, no Velódromo, perante, certamente, uma concorrência extraordinária, enorme, os nossos hóspedes e a nossa gente se baterão (…), demonstrarão as suas forças, o seu suor, as suas habilidades, procurando cada team lograr a vitória do encontro. A prova de hoje vai surpreender o público pela beleza dos lances, presteza dos toques e pelos formidáveis kicks (…). No training de ontem, foi causa do pasmo das pessoas que lá passaram. (…) A equipe de S. Paulo, hoje constituída por footballers estrangeiros, aqui residentes, está bem preparada e temos a convicção de que ela, se não vencer, terá grande resistência aos ataques do disciplinado team adversário. O match começará às 8 e meia em ponto”.

Time brasileiro de 110 anos atrás usou camisas alvirrubras. Com a bola, o “patriarca” Charles Miller, autor dos dois gols paulistas

Quando a notícia chegou a Buenos Aires, foi publicada na revista Caras & Caretas em matéria de onde retiramos as imagens em preto e branco que a ilustram. Ela contém o equívoco de que a partida teria ocorrido já no dia 1º de julho:

“No 1º do corrente se jogou em São Paulo uma das mais interessantes partidas da série organizada em ocasião da visita dos footballers argentinos ao Brasil. Seu resultado – 2 a 2 – é uma expressão acabada do bom jogo que fizeram os dois bandos e do equilíbrio de suas forças. O encontro atraiu uma concorrência que alcançava as três mil pessoas, entre as quais se notou muito entusiasmo quando foi içada a bandeira dos campeões portenhos, que se realizou em meio de grandes aclamações. A recepção que se deu em São Paulo ao nosso team foi muito grata a seus membros, que se mostraram também agradecidos pelo esplêndido alojamento que lhes proporcionou e as muitas atenções de que foram objeto.”

Em tempos de cavalheirismo rigoroso no football, ninguém teceu qualquer suspeita quanto à arbitragem da partida ser exercida por um dos vice-presidentes da associação argentina, Mariano Reyna. A escalação visitante foi formada por Campbell, Jorge e Juan Brown, Lennie, Vernet Amadeo e Browne, Malbrán, Susán, Eliseo e Ernesto Brown e Burgos.

Os brasileiros também eram anglo-saxões na escalação do dia, alinhada com Willis (Germânia, atual Pinheiros), Tommy Ritschler (Paulistano) e Catton (São Paulo Athletic, o SPAC), Gerhardt, Thiele (ambos Germânia) e Steward, Roberts (ambos SPAC), Einfuhrer (Germânia), Charles Miller (SPAC), Stany (Germânia) e Colston (Paulistano). As cores adotadas pelos germano-paulistas foram listras alvirrubras na camisa, calças brancas e meias negras.

Os primeiros 25 minutos teriam sido um jogo aberto, com os atacantes argentinos praticando intensas investidas contra Willis, descrito por realizar defesas magistrais, enquanto que os atacantes brasileiros demonstravam bons passes e dribles, mas com chutes amortecidos pelos primos Juan e Jorge Brown, a sólida dupla de beques do Alumni e da seleção na época – Juan foi o primeiro símbolo da seleção enquanto Jorge foi o último remanescente daqueles tempos, participando em 1916 da primeira Copa América como único da família a chegar a joga-la.

O placar foi aberto pelos argentinos já perto do intervalo. Em um bate-rebate, a bola sobrou a Burgos, que a repassou para Eliseo Brown (último sobrevivente da família, tendo chegado à década de 70) marcar. O lance não tirou a calma paulista para o segundo tempo. Após Einfuhrer perder duas boas oportunidades, o empate coube a ele: Charles Miller, então com 34 anos de idade, teve fôlego para disparar um ataque, driblar um dos Brown e vencer Campbell.

Os argentinos não tardaram a se recolocar em vantagem. Uma confusão na grande área paulista terminou em pênalti cometido por Tommy e convertido por Ernesto Brown – até hoje o homem que mais venceu o campeonato argentino, participando dos dez títulos do Alumni (tinha quinze anos no primeiro, em 1900) e no primeiro do Quilmes, campeão em 1912 reforçado com diversos membros da potência que se desmanchara. E coube novamente a Charles Miller empatar (eis uma façanha sua desconhecida) aproveitando passe pela esquerda.

Nos dias seguintes, novamente no Velódromo, os placares foram estes: 6-0 para os hermanos no dia 5 de julho sobre os “estrangeiros” de São Paulo e 4-0 no dia 7 sobre os “nativos”, nos quais jogava Rubens Salles, que em 1914 faria o gol da primeira vitória da seleção brasileira sobre a Albiceleste, pela primeira Copa Roca. Os argentinos logo pegaram um trem para os compromissos cariocas, todos nas Laranjeiras. No dia 9, venceram por 3-2 um combinado “nativo” que na realidade tinha dois argentinos, os irmãos Víctor e Emilio Etchegaray, ambos fundadores do Fluminense. Pausa para visita argentina a Petrópolis e no dia 11, um “outro” 7-1, aplicado pelos visitantes sobre cariocas “estrangeiros”. No dia seguinte, almoço no palácio do Itamaraty com brinde oferecido pelo Barão do Rio Branco seguido pela última partida: 3-0.

Para mais detalhes dessas partidas e de outras que envolveram brasileiros e argentinos antes de partidas “oficiais”, entre seleções, recomendamos a postagem completíssima do Viejos Estadios, que nos deu ciência do tema.

Anúncio do jogo no “Correio Paulistano” de 2 de julho e a estreia “oficial” da camisa alviceleste, em setembro, com vários remanescentes de 110 anos atrás: o árbitro Mariano Reyna segura a bola, acompanhado por Martin Murphy, Carlos Wilson e Juan Brown; Gottlob Weiss, Alfredo Brown, Arnoldo Watson Hutton, Eliseo Brown e Maximiliano Susán; Harold Ratcliff, Ernesto Brown e Patricio Browne

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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