110 anos do 1º argentino globalizado: Alejandro Scopelli, jogador da Copa 30
Hoje banal, trabalhar em clubes de futebol de diversos países era algo raro antes dos anos 90, especialmente a sul-americanos. Alejandro Emilio Scopelli Casanova, nascido em 12 de maio de 1908 em La Plata, honrou o segundo sobrenome como um verdadeiro aventureiro da bola, com passagens notáveis e por vezes campeãs em três continentes, que fazem sua participação na Copa do Mundo de 1930 virar apenas um detalhe. El Conejo (“O Coelho”) também defendeu a seleção italiana, sendo um dos três que oficialmente jogaram pela Argentina antes e depois de defenderem outro país.
Scopelli integrou o Estudiantes desde os 15 anos e foi lançado no time adulto em 1927. De cara, demonstrou sua grande técnica e habilidade para chegar ao gol: mesmo sendo meia-esquerda e não centroavante, ficou na vice-artilharia, com 27 gols, e por um time que ficou só em 11º. Em 1928, veio o bronze. Em 1929, a estreia na seleção. E em 1930, a participação na Copa e novo vice no campeonato argentino. Aquele Estudiantes, afinal, tinha um fantástico quinteto ofensivo apelidado de Los Profesores, dentre os quais Scopelli, o capitão da Argentina no mundial (Manuel Ferreira), um futuro campeão da Copa de 1934 pela Itália (Enrique Guaita) e um que defenderia a seleção francesa (Miguel Ángel Lauri).
Na Copa, a participação de Scopelli limitou-se à semifinal contra os EUA. Embora tenha marcado um gol na goleada de 6-1, viu o titular na posição voltar para a final: Francisco Varallo (maior artilheiro profissional do Boca no século XX, ficou depois mais famoso como último sobrevivente daquela Copa, falecendo aos cem anos, em 2010), que ainda não estava 100% recuperado de lesão, mas foi imposto no lugar do saudável Scopelli por pressão de um dos cartolas da delegação, dirigente do Gimnasia LP. Era o clube de Varallo na época e era o clube que havia enviado dois barcos repletos de torcedores para verem o ídolo em ação em Montevidéu. Foi a grande amargura da carreira do Conejo.
Em 1931, os Profesores do Estudiantes estavam em ponto de bala no primeiro campeonato profissional argentino (aliás, Scopelli foi o maior artilheiro alvirrubro no amadorismo: 91 gols em 118 jogos). O torneio ofereceu diversas marcas pioneiras àquele elenco para as estatísticas da nova era: o primeiro time a marcar 7 gols em um jogo, sobre o Chacarita, na 3ª rodada; o primeiro a marcar 8, no Lanús, na 14ª (a superioridade foi tamanha que o juiz finalizou o jogo aos 23 do segundo tempo: os grenás fizeram dos pinchas os primeiros a vencerem por W.O. também); o primeiro a marcar nove, sobre o Ferro, na 23ª. Todos vencidos sem marcar um único gol. A imagem que abre a matéria exibe uma dividida raçuda no Clásico Platense, contra o Gimnasia, naquele ano.
Não surpreendentemente, o Estudiantes teve o melhor ataque, com 103 gols; o artilheiro, o centroavante Alberto Zozaya, com 33 gols; e o vice-artilheiro: o próprio Scopelli, com 32. Foram cerca de vinte gols a mais que o campeão Boca (que levou três gols dele no torneio), trajetória que detalhamos aqui. Scopelli teve ofertas do River recém-millonario e do futebol italiano, mas seguiu em La Plata. O time foi só sexto em 1932. Em 1933, ele então cedeu à oferta da Roma, partindo junto com Guaita. Dupla que continuou afinada: cada um marcou 14 vezes na Serie A de 1933-34, dividindo a artilharia dos giallorossi na temporada.
Em janeiro de 1935, Scopelli fez sua única partida pela Itália, em vitória por 2-1 sobre a França. Em paralelo, sua dupla com Guaita seguia afinada na Roma: ambos somarem 36 gols na temporada 1934-35, desempenho só igualado no time em 2016-17, pela dupla Edin Džeko e Mohamed Salah. Mas a invasão do exército italiano na Abissínia assustou diversos ítalo-argentinos que jogavam na Bota, temerosos da convocação. Guaita, Scopelli e o também romanista Andrés Stagnaro voltaram à Argentina, acertados com o Racing após alguns percalços – Scopelli chegou a ser detido pelos fascistas.
Em Avellaneda, Scopelli conseguiu notável média de 0,73 gols por jogo. Foram 44 em só 60 jogos, ainda que conseguisse no máximo o 3º lugar. Foi o suficiente para ser considerado ídolo racinguista e voltar à seleção para a disputa da Copa América realizada na virada de 1936 para 1937. Reeditou na seleção a parceria de outros tempos com Zozaya, em especial no 6-1 sobre o Paraguai, em que marcou duas vezes e o colega, três. Na rodada final contra o Brasil, acertou o travessão. O lance não fez falta, com o título se confirmando sobre os tupiniquins em uma final um tanto tumultuada.
Em 1937, o Racing ficou em quarto, a dezoito pontos do campeão River, que naquele ano inaugurou o Monumental. Por uma tarde, o mítico estádio rival viu os dois clubes se igualarem. Graças a Scopelli. O Millo abriu 4-0. E El Conejo comandou a reação da Academia, marcando três vezes e o velho parceiro Guaita, outra, para igualar tudo em 4-4. Foram os últimos gols de Scopelli no futebol argentino: voltou à Europa, dessa vez a uma nação que parecia pacificada, a França. Na época, o futebol de Paris tinha como representantes máximos o Racing e o Red Star. O argentino defendeu ambos.
O resto é uma história em tópicos para cada etapa de uma carreira incrível:
No Red Star, o time fundado por Jules Rimet, Scopelli foi campeão da segunda divisão francesa da temporada 1938-39 – junto de outro ex-jogador da seleção argentina, Oscar Tarrío (ídolo do San Lorenzo), em campanha sob direção técnica inicialmente prestada pelo também hermano Guillermo Stábile, seu ex-colega na Copa de 1930. Porém, sobreveio a Segunda Guerra e Scopelli novamente não deu chances ao azar. Dessa vez, foi jogar no neutro Portugal, acompanhado por Tarrío.
O destino foi o Belenenses, na época de poderio ainda parelho com Porto, Benfica e Sporting (que sequer havia conquistado a liga ainda). Tarrío tanto gostou da “terrinha” que por lá faleceria, já em 1973. E lá Scopelli começou uma nova carreira, primeiramente ainda como jogador-treinador. Foram dois anos nas Salésias. Em uma liga de três grandes, conseguiu dois bronzes na liga pela “equipa” azul de Lisboa e dois vices na Copa. Foi um pioneiro na preocupação defensiva do futebol, por vezes atribuída somente ao suíço Karl Rappan. Scopelli já jogava com quatro defensores nos anos 40, época em que o sistema pirâmide (2-3-5) ainda predominava. Também implantou marcação individual.
Em 1941, deixou uma Europa em guerra e parou na Universidad de Chile, onde manteve-se como jogador-treinador por mais dois anos, chegando a ser ainda em 1941 emprestado ao Unión de Santa Fe – mas logo saiu, irritado com interferência dos cartolas nas escalações. Voltando a La U, virou o primeiro jogador dela a conseguir três gols na mesma partida do campeonato nacional, em vitória de 5-0 sobre o Santiago National. Além de jogador-treinador, era também redator na principal revista esportiva chilena, a Estadio. Em 1944, jogou uma única vez e passou a ser só treinador. Porém, não suportou sete derrotas seguidas. Mas sua história no clube ainda teria novo capítulo…
Com o fim da guerra, reapareceu em 1947 no Belenenses, mas desentendimentos com interferências da diretoria no trabalho similares aos vivenciados no Unión o fizeram ser expulso, inclusive com ajuda da polícia salazarista. Humilhado e sem conseguir indenização na justiça, rumou ao Porto. Era a época do Sporting campeão de tudo, secundado pelo Benfica.
Sem sucesso no norte, Scopelli atravessou a fronteira para brilhar na Galiza: em 1949, chegou ao Deportivo La Coruña. Antes (e também depois…) dos tempos de SúperDepor, a equipa galega tinha uma realidade modesta, mais frequente na segunda divisão. Pois sob o argentino Riazor viveu pela primeira vez a experiência de um pódio, saindo de um décimo lugar na temporada 1948-49 para chegar ao vice-campeonato da temporada 1949-50, e apenas um ponto abaixo do campeão Atlético de Madrid – na época, a equipe madrilenha mais vencedora e treinada pelo também argentino Helenio Herrera. O goleiro Juan Acuña terminou convocado à Copa de 1950.
Retornou à Universidad de Chile entre 1950 e 1952. Ocasionalmente, ainda entrou em campo em jogos festivos.
No Espanyol, chegou em 1952 e ficou três temporadas. Causou enorme impacto inicial no Sarrià, ficando famosa a metodologia de pôr máscaras nos jogadores nos intervalos para que respirassem oxigênio puro, o que segundo o argentino os revitalizaria melhor para os segundos tempos – há versões de que era puro doping psicológico e que não haveria nada demais na medida. Fato é que a receita funcionava: foram vinte rodadas liderando La Liga na temporada 1952-53. Os blanquiazules ficariam em quarto, mas na temporada seguinte saborearam um 4-1 no dérbi catalão com o Barcelona em pleno Les Corts, o antigo estádio rival; novo triunfo lá pelo clássico demoraria 19 anos. E essa ainda é a maior goleada perica sobre o rival na casa dele.
Voltou a Portugal, para dirigir uma entressafra do Sporting Lisboa, então o maior campeão lusitano. Na rodada final de 1954-55, seu amado Belenenses seria campeão se vencesse em casa o Sporting. E Scopelli demonstrou seu profissionalismo: os alviverdes no fim ganharam por 1-0 e entregaram o título ao rival Benfica… embora os encarnados fossem os campeões, o time de Alvalade foi o primeiro representante português na Liga dos Campeões da UEFA, iniciada na temporada 1955-56. E coube a Scopelli ser o único argentino na primeira partida da história da competição, contra o Partizan.
Ainda em 1956, voltou à Galiza, mas para passagem pouco exitosa pelo Celta de Vigo. O time escapou por pouco do rebaixamento. Ainda assim, deixou-o sob homenagem com ramos de flores preparados pelos juvenis, tão valorizados pelo argentino, que assinara com o clube sob a condição de também supervisiona-los: sua filosofia era “formar as equipes com um sistema de jogo estável, segundo as características dos homens (…). Não se pode impor a uma determinada equipe uma tática se não for em base dos homens de que se dispõe. O futuro do Celta tem que estar nos muchachos da canteira. Assim como fiz em A Coruña, me dedicarei a treinar às tardes a garotada entre 13 e 17 anos que tenham gosto por futebol. É um trabalho lindo”.
No Valencia, Scopelli, sem trabalhar desde passagem pelo Granada entre 1957-59, passou uma só temporada, a de 1962-63. Mas foi o suficiente para ter dois títulos europeus no currículo: assumiu na reta final o comando dos Ches na campanha campeã da Liga Europa (então Copa das Feiras) de 1961-62, só finalizada já em setembro de 1962, com o triunfo agregado de 7-3 sobre o Barcelona de Sándor Kocsis. Em junho de 1963, viria o bicampeonato na competição, com o 4-1 agregado sobre o Dínamo Zagreb. Scopelli foi o primeiro treinador campeão continental no clube.
Em 1964, perdeu só dez de 49 partidas dirigindo o América do México, em um elenco estrelado pelos brasileiros Moacir e Zague (pai de Zaguinho, que jogou pela seleção tricolor a Copa de 1994). Foi o primeiro treinador estrangeiro a conseguir um título profissional pelas Águilas, no bicampeonato da Copa MX em 1964 e 1965.
Em 1966, estava de volta à Universidad de Chile, enfim resolvendo a pendência das duas anteriores: um título. Ele veio no campeonato de 1967. A equipe já vinha sendo chamada de Ballet Azul na década, mas só ali iniciou o torneio com quatro vitórias seguidas. Scopelli tornou-se o primeiro técnico estrangeiro campeão com La U, e acabou por dirigir a seleção chilena na Copa América realizada naquele mesmo ano.
Em 1970, após recusar convite a dirigir uma desorganizada seleção argentina recém-desclassificada nas eliminatórias, voltou ao América mexicano. O título não veio na segunda passagem, mas pôde saborear vitórias em todos os clássicos travados pela liga: os capitolinos com Cruz Azul e Pumas e o nacional, com o Chivas Guadalajara. A nova passagem também permitiu a ele ser o técnico com mais vitórias no clássico com a Cruz Azul, abatida seis vezes por Scopelli.
Voltou ao Belenenses na temporada 1972-73 e conseguiu um vice-campeonato, colocação que o clube (agora do Restelo) não obtinha desde a trágica “época” de 1954-55. E não mais igualada posteriormente.
O último clube de Scopelli foi o América do México, pelo qual realizou uma terceira passagem em 1977 e 1978, jurando ao acompanhar de lá a Copa do Mundo de 1978 que o argentino José Miguel Marín, do rival Cruz Azul, seria um goleiro melhor que o campeão Ubaldo Fillol. Marín havia se destacado no primeiro título argentino do Vélez, em 1968. El Conejo radicou-se nas terras astecas e na Cidade do México ele faleceu em cirurgia na vesícula, em 23 de outubro de 1987. A tempo de verbalizar seus conceitos inclusive em um livro de técnicas e táticas, ¡Hola, Mister!.
Caio Brandão
Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer
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