110 anos do clássico rosarino, o mais ferrenho da Argentina (e do mundo?)
Das maiores rivalidades do planeta, nenhuma deixa há tanto tempo de ter um vira-casaca como a que divide Rosario. Lá se vão mais de trinta anos sem alguém que se atreva a isso por lá, talvez o maior atestado do nível da rixa cujo primeiro capítulo ocorreu há exatas onze décadas. E que, ainda em tempos de algum cavalheirismo, nos anos 20, fez o lado rubronegro batizar o auriazul com o nada sutil adjetivo de “canalha”, e em contrapartida receber o apelido de “leproso”. Elegemos os encontros mais significativos por década para contar o básico desse clássico – com os períodos áureos de Rosario Central, nos anos 70, e Newell’s Old Boys, no início dos anos 90, merecendo dose extra.
Antes, um parêntese sobre os doblecamisetas: o último foi o goleiro Juan Carlos Delménico, em 1984, quando foi rebaixado com o Central onze anos após ser revelado no rival. Podemos elencar “traidores” mais recentes em rivalidades políticas como Lazio-Roma (Siniša Mihajlović), religiosas como Celtic-Rangers (Mo Johnston), cinematográficas como Millwall-West Ham (Teddy Sheringham) e pelos também ferozes dérbis de Praga (Karel Poborský), Belgrado (o brasileiro Cléo) e Istambul (Emre Aşık, da Copa 2002, jogou nos três grandes turcos). Listamos alguns dos de Rosario neste outro Especial.
O clásico rosarino também é o mais antigo ainda disputado no futebol argentino, já que o de Alumni x Belgrano Athletic passou ao rúgbi e Quilmes (fundado em 1887) e Argentino de Quilmes (de 1899) só passaram a se enfrentar em 1906. Para saber mais dos primórdios do Rosario Central, clique aqui. Para conhecer um pouco dos inícios do Newell’s, confira aqui. Já o clássico de 110 anos atrás foi retratado em uma bela história em quadrinhos: veja neste site.
Anos 1900: o início
Em 1905, surgiu a liga rosarina, proporcionando o primeiro encontro entre o Newell’s, fundado dois anos antes, e Central, criado no natal de 1889. Foi na Plaza Jewell, campo do Atlético del Rosario (então Rosario Athletic), na época a principal força da cidade e hoje voltado ao rúgbi. O Central se entusiasmava mais com amistosos em Buenos Aires e usou seus reservas. Faustino González, do Newell’s, fez o único gol. Mas talvez não seria diferente se a postura auriazul fosse outra: nos cinco primeiros clássicos, os rubronegros venceram três e empataram os outros, além de embalarem uma invencibilidade geral de 26 jogos. Só não venceram dois deles, justo os dois empates no dérbi. Em 8 de setembro de 1907, então, Antonio Vázquez e Percy Jones garantiram a primeira vitória canalla no clássico. E a primeira derrota oficial do arquirrival.
Anos 1910: com os maiores tabus e goleadas
O Newell’s emendou dez vitórias seguidas nessa época, período que registrou sua maior goleada, um 7-0 fora de casa em 1912, com Manuel Lito González (irmão de Faustino) marcando quatro vezes – ele somou 30 gols no clássico e é seu maior artilheiro. Mas o Central não só devolveu em curto prazo como iniciou seu próprio tabu ao quebrar o do rival, com onze triunfos consecutivos a partir de 1914. Ou seja, Rosario não viu um empate em 21 dérbis em sequência. E desses onze seis foram como visitante, também a maior sequência disso no clássico, incluindo cinco goleadas em pleno Parque Independencia: 5-0 (que valeu o título rosarino), 6-0, 8-0, 6-0 e um 9-0, vitória mais elástica dos auriazuis e do dérbi.
Anos 20: pelas finais regionais
Em 1926, o Newell’s conseguiu sua única vitória em uma final com o Central, um 3-1 pela Copa Rosarina com Vicente Aguirre, Humberto Libonatti e Arturo Chini Ludueña. Mas volta olímpica com vitória na casa rival só os canallas conseguiaram, ainda que todas por ligas regionais, foco da dupla até 1939. Fizeram em 1928 uma verdadeira final pois ambos haviam se igualado em pontos e faziam jogo-extra no Parque Independencia. José Podestá fez o único e suficiente gol do título da liga rosarina.
Anos 30: ainda artigo local
O melhor resultado do Newell’s no clássico nessa década foi um 4-1 pela liga rosarina em 1934, quando seria o campeão regional. Já a quarta e última final entre os dois times ocorreu em 1936, pela copa rosarina: Central 3-2, com um de Roberto D’Alessandro e dois de Aníbal Maffei no campo neutro do Gimnasia y Esgrima de Rosario. Gómez e Rúa fizeram os do vice.
Anos 40: com rebaixamento e eliminação nacional
A dupla rosarina fora admitida só em 1939 no campeonato argentino, então restrito à Grande Buenos Aires e La Plata apesar do nome. Os auriazuis não fizeram rapidamente jus ao prestígio e caíram em dois anos. Um clássico na antepenúltima rodada praticamente selou-lhes a sorte: 5-0, com três de Mario Morosano (genro daquele Faustino González que fez o gol do primeiro dérbi), incluindo um de mão, e dois de René Pontoni, futuramente ídolo do Papa Francisco no San Lorenzo (saiba mais). Essa é a maior goleada do clássico na era profissional, após 1931. O melhor troco veio em 1948, pela Copa Británica. Luis Bravo, duas vezes, e Benjamín Santos decretaram virada de 3-2, permitindo ao Central eliminar o rival fora de casa a nível nacional pela primeira vez. José Arnaldo e Juan Benavídez descontaram.
Anos 50: Central cai de novo, mas domina a cidade (I)
O Central voltou a cair em 1950 e não evitaria isso mesmo se vencesse o clássico em casa no segundo turno. Pois, no primeiro, conseguiu um 4-3 no campo rubronegro. Raúl Contini, duas vezes, e Elio Montaño fizeram para a Lepra, mas os visitantes contaram com dois de Eduardo L’Epíscopo e outros dois do maior artilheiro profissional auriazul, Waldino Aguirre. Na volta à elite, já em 1952, os auriazuis devolveram as provocações perdendo só três vezes nos 16 clássicos seguintes. E apenas uma foi em casa, em 1956. Raúl Belén e Luis Pereyra fizeram os gols sangre y luto e Ricardo Giménez, o auriazul.
Anos 60: tempero brasileiro
O único rebaixamento do Newell’s deu-se em 1960, apesar de uma goleada de 5-3 no rival onde perdia por 2-0. A volta à elite demorou até 1964 e o cartão de visitas no retorno não poderia ser pior. Na primeira rodada da elite em 1964, recebeu o Central, que venceu por 4-0. José Malleo (duas vezes), Néstor Borgogno e Alejo Medina ditaram a goleada mais elástica fora de casa em um dérbi profissional. Vale menção que no returno houve empate em 2-2 com os gols rubronegros sendo brasileiros, de João Cardoso e Mário Zucca, estrangeiro com mais gols no século XX pelo clube.
Mas troco mesmo ficou para o ano seguinte, de novo via Brasil: o ex-gremista João Cardoso fez o único gol. Acabaria se transferindo ao gigante Independiente e se consagrar no rival Racing em 1967 (titular na única Libertadores racinguista, em 1967, marcando gol na final, e também do elenco campeão mundial). O triunfo foi no Gigante de Arroyito, a casa centralista, onde a Lepra não batia o rival havia nove anos. E onde demoraria outros quinze para vencê-lo novamente. Ou seja: Cardoso deu ao Ñuls sua única vitória num espaço de 24 anos fora de casa no dérbi mais ferrenho do mundo.
Atualização em 18-06-2015: entrevistamos posteriormente João Cardoso, que ao lembrar do gol de 1965 esclareceu que “foi escanteio, o Aguirre chutou e dei um pulo, uma cabeçada. Foi uma grande retranca, o Central era muito superior, favorito. A tática era ‘dez para atrás e Joao à frente’ – o argentino não fala o til. O Gironacci, goleiro do Newell’s, pegou tudo o que era bola e, milagrosamente, conseguimos um escanteio”. Clique aqui para ver a entrevista.
Anos 70: pelos primeiros títulos nacionais e Libertadores
Ser campeão nacional pela primeira vez eliminado o rival da vida na semifinal é coisa para ser lembrada por séculos. E os auriazuis por hora vão levando isso muito a sério: todo ano confraternizam na presença de Aldo Poy, autor daquele gol de peixinho (que os argentinos chamam de palomita, “pombinha”), o único daquela ocasião no neutro Monumental de Núñez. É obrigado a reencenar a jogada nessas festas: saiba mais. Ele é primo do ídolo são-paulino José Poy, que mesmo radicado por 40 anos no Brasil não esqueceu as raízes: se dispôs a ser espião tricolor para a final da Libertadores de 1992. Já Aldo continua embalado por aquele lance a ponto de recentemente se eleger vereador em Rosario.
O Central ainda seria bicampeão em 1973. O Newell’s, ainda com zero títulos no Argentinão, desengasgou um pouco em 1974, quando enfim a taça lhe veio. E foi justo perante o arquirrival. Não foi com vitória, mas valeu como se fosse: jogava no Gigante de Arroyito e perdia por 2-0. Buscou o empate no fim, com um canhotaço do ídolo Mario Zanabria (o meia-esquerda das primeiras Libertadores que o Boca venceu, em 1977 e 1978) fora da área. Foi na última rodada do quadrangular final.
Mas a resposta centralista veio rápida. A dupla esteve junta na Libertadores de 1975. O regulamento era rigorosíssimo e só o líder dos grupos avançavam de fase. Eles se igualaram em pontos e precisaram de um jogo-extra para decidir quem ia ao triangular-semifinal. Um gol de falta do mito Mario Kempes garantiu o avanço canalla. El Matador ainda faria todos em um 3-0 naquele ano pelo nacional.
Anos 80: valendo por final e revelando Batistuta
o Rosario Central emendou um raríssimo bi seguido com título da segundona emendado com o da elite em 1987, com o gosto extra de deixar justo o Newell’s de vice na volta olímpica “principal”. Foi até hoje seu último título, mas os clássicos de 1986-87 não foram exatamente na reta final. Assim, ficamos com outra semifinal, do nacional de 1980. Juan Ghielmetti, José Gaitán e Víctor Marchetti praticamente definiram a contenda com aqueles 3-0 no jogo de ida. O título viria adiante.
Já o melhor resultado do Newell’s foi um 5-3 em 1989, pela extinta liguilla. Juan Llop, marcando contra, e Juan Pizzi e Edgardo Bauza fizeram os auriazuis. Para a Lepra, seu artilheiro máximo Víctor Ramos fez um e Andrés Taffarel, dois. Assim, quem fez a diferença foi o jovem Gabriel Batistuta, de passagem irregular no Newell’s mas que naquela tarde de glória fez os outros dois gols.
Anos 90: resposta leprosa, resposta canalla
1987 significou o quarto título auriazul enquanto os rubronegros tinham só o de 1974. Em meia década, a Lepra, em sua época mais dourada, igualou a conta, vencendo em 1988, 1991 e 1992, além de ser vice nas Libertadores de 1988 e 1992. O título de 1991 se iniciou ainda em 1990. Detalhe: o Central era o líder inicial. Não perdia em casa o clássico desde 1980. Se pegaram na oitava rodada e o time de Marcelo Bielsa, em sua primeira temporada como técnico, abriu 2-0, com Fernando Gamboa de peixinho e Julio Zamora. Christian Ruffini e Lorenzo Sáez anotaram os outros dois. O rival, só na habilidade de David Bisconti na bola parada, foi sempre diminuindo, mas não igualou. No fim, 4-3 para os visitantes. Bisconti fez três gols em um só clássico mas, em um jogo coletivo, não adiantou.
Em 1991, o Newell’s conseguiu um 4-0 que consegue ser menos recordado que um 1-0 de 1992. Motivo: teve de conciliar boas campanhas em casa e na Libertadores. Sufocado, o time de Bielsa pediu o adiamento do dérbi pois no dia seguinte entraria em campo pelo torneio continental. Negaram. Racional, Bielsa ousou usar reservas contra o rival. Mas a vitória veio do mesmo jeito, com Christian Domizi se antecipando ao veterano zagueirão Edgardo Bauza (maior artilheiro profissional do clássico, apesar da posição) para aproveitar cruzamento de Juan José Rossi. Os leprosos perderiam a Libertadores para o São Paulo, mas semanas depois garantiram o consolo do título do Clausura.
Seriam necessários mais doze anos para uma nova taça. Mas Maradona não sabia disso em 1993 e topou vestir sangre y luto. Não teve êxito, mas ainda é troféu simbólico exclusivo do NOB em Rosario. A resposta canalla veio em 1995. Não exatamente com aquilo que sempre escapou do rival, uma taça continental (pois venceu a Copa Conmebol, em final dramática com o Atlético Mineiro). Mas sim em um amistoso no início do ano. Se o Newell’s teve Maradona até 1994, o Central trouxe Kempes de volta para uma única partida. El Matador se despediria e, mesmo gordo, marcou o gol da vitória: saiba mais. Por essas circunstâncias, a goleada de 4-0 arrancada em 1997 com quatro expulsões rivais fica de fora.
Anos 2000: ajudando no título e reforçando freguesia internacional
Em 2004, o Newell’s voltou a ser campeão, algo que só se repetiria em 2012. Mas o início não foi animador: derrota em casa para o Vélez e o já ameaçado técnico Américo Gallego, ídolo rubronegro como volante nos anos 70, estava para ser mandado embora. Tudo se resolveu na segunda rodada: uma bola parada a 15 minutos do fim resultou em gol de cabeça de outro ex-gremista, Julián Maidana. A Lepra não vencia o clássico havia seis jogos e enfrentava baluartes daquele ano de 1995 do rival, como Eduardo Coudet e Horacio Carbonari. Para melhorar, foi no Gigante de Arroyito. O Central devolveu na Sul-Americana de 2005: trinta anos após 1975, os canallas voltavam a eliminar o rival no continente, dessa vez graças ao latera-esquerdo Germán El Pirulo Rivarola, que desviou um cruzamento no último lance do primeiro tempo para protagonizar o Pirulazo.
Anos 2010: Central cai de novo, mas domina a cidade (II)
O clássico não ocorreu entre 2010 e 2013, anos em que o Central esteve na segundona. Desde que voltou, porém, não perdeu. Aliás, os auriazuis não perdem desde 2008 o dérbi. Assim, o único resultado positivo possível para listarmos ao Newell’s foi o empate fora de casa em 2010, gols de Diego Braghieri em cruzamento e Rolando Schiavi, de pênalti em um encontro obviamente tenso, com quatro cartões vermelhos. A igualdade custaria adiante o descenso aos mandantes. Que, desde que retornaram à elite, só venceram: 2-1 pelo Inicial em 2013, 1-0 pelo Final 2014 e 2-0 pelo Transição 2014. Ficamos com o 1-0, conquistado fora de casa com Franco Niell, ex-Figueirense. O Central não vencia o clássico no Parque Independencia havia sete anos.