Os festejos de réveillon não param em Avellaneda após a virada. O futebol sul-americano deveria fazer o mesmo. Todo ano começa com o maior campeão da Libertadores celebrando idade nova. Foi em 1 de janeiro de 1905 a data marcada para a primeira assembleia-geral dos fundadores para discussões sobre estatutos, regulamentos e eleições para a direção. Mesmo com os festejos ocasionando falta de quórum para que a assembleia ocorresse, a comissão diretiva resolveu adotar a primeira data do ano para oficializar a fundação de um quadro de ex-sócios do Maipú. Eram adolescentes que se viram como “independentes” e daí escolheram o nome do então Independiente Foot-Ball Club.
Se haveria uma data mais precisa para a criação do Rojo, seria 4 de agosto de 1904, quando os jovens Rosendo Degiorgi, Marcelo Degiorgi, Luis Bassou, Nicolás Bassou, Fernando Aizpuru, Juan Ipart, Nicolás Cabana e Antonio Cabana se separaram do tal Maipú, entidade formada em geral por empregados do comércio. Inicialmente, eles pensaram em se filiar ao Atlanta, fundado no início de outubro e que curiosamente anos depois se enraizaria em um bairro comercial, se atrelando à comunidade judaica (clique aqui). Trabalhavam no A La Ciudad de Londres, maior loja de departamentos da cidade, na esquina da rua Victoria (hoje Hipólito Yrigoyen) com a Perú. Embora pagassem cotas de sócios no Maipú, a tenra idade os privava de jogar. A decisão por um novo clube veio em reunião no bar da frente.
Logo em 19 de janeiro de 1905 veio o primeiro jogo, exatamente contra o Atlanta, um 2-2. Mas arrumar campo foi complicado à garotada, que nos primórdios pulou de bairro em bairro: A La Ciudad de Londres se situava no de Monserrat e o primeiro campo adquirido, em dezembro de 1904, estava no de Flores, na esquina da Boyacá com Camarones. Também em Flores, treinavam na Avenida Gaona com Bella Vista (hoje Donato Álvarez). Ainda em 1905, chegaram a alugar terreno também na esquina da Avenida Alvear com Tagle, hoje no bairro da Recoleta (que na época integrava o de Palermo), nas imediações de terreno onde o River ergueria em 1923 seu primeiro estádio na fina zona norte portenha. Os rebeldes se afiliaram na associação argentina, marcaram linhas no campo, puseram arcos e redes, mas o gramado foi considerado impróprio pela associação e não puderam participar.
Em 1906, eles alternavam práticas entre a esquina da Avenida San Martín com a atual Donato Álvarez (bairro de Villa Mitre), onde já usavam antes da tentativa na Alvear e Tagle, e na Dorrego (hoje Paysandú) com Espinoza, no bairro de La Paternal. Em 1935, aqueles fundadores se reuniram para redigir uma história exata do clube. E assim se referiram àquele momento, passadas três décadas: “finalizava o ano 1906 e com ele o contrato pelo terreno da Avenida San Martín. (…) De novo em busca de outro campo e após não poucas incursões, encontramos um no berço de um clube – ‘Racing’ – que, já prestigioso, monopolizava esportivamente aquela importante zona: Avellaneda”.
“Sabíamos da simpatia e adesão que rodeava o clube de referência, o que podia parecer nossa intenção de endereçarmos-nos ali um tanto temerária; mas sabíamos também que alguém havia dito que não há que torcer o curso do próprio destino”. Em 1907, o Independiente se sedimentou em Avellaneda e enfim começou a participar do campeonato argentino, na terceira divisão. E novamente coube ao Atlanta cruzar o caminho do Independiente, dessa vez pelo acaso do sorteio. Hoje decadente na terceira divisão, o clube que quase absorvera o maior campeão das Américas venceu de 21-1 (!).
Voltemos às palavras dos fundadores: “não obstante a derrota que se havia experimentado, não se perde o entusiasmo nem mesmo a fé. Os jogos contra outros clubes se sucedem até que chega o domingo de 9 de junho de 1907, em cujo dia nos corresponde jogar com o Racing. Recorde-se que o Racing contava como aderentes a maior parte dos aficionados; que havia vencido o Atlanta amplamente, vencedor este por sua vez do nosso team por grande score, e será fácil imaginar quantos supunham, quase asseguravam, como precária a vida do nosso clube em Avellaneda”. O comentário é que os experientes adversários, por terem ganho bem do Atlanta, venceriam o novo vizinho por 40-0 – falamos aqui.
“Não faremos uma descrição da partida: só diremos que se iniciaram as ações com tranquila segurança do triunfo por uma parte; pela outra, com a energia que se supõe em quem tem a firme vontade de cumprir com o tácito lema de ‘jogar-se inteiros’. Consignaremos, é claro, algumas cifras: primeiro tempo: Independiente 2, Racing 0; 30 minutos do segundo tempo: Racing empata. Faltam dois minutos para finalizar o encontro; um defensor quita, adianta a bola. Toma Pomarini, esquiva uma, duas, três vezes. Envia cruzamento que recolhe Rosendo Degiorgi. Se acomoda, atira: GOAL! Se reinicia o jogo, breves boladas e apito final. O Independiente triunfa por 3-2. Clamor na multidão!”. E figuras do Racing se atrairiam pelo vizinho, seja brevemente, como Germán Vidaillac, fundador racinguista que batizara o alviceleste, ao qual estaria de volta nos idos de 1910; ou marcado na eternidade, caso de Amadeo Larralde, que jogara pelo Racing naqueles 3-2 e seria autor do hino do Independiente.
Se o Independiente tivesse um pai, seria Rosendo Degiorgi: herói do primeiro Clásico de Avellaneda, primeiro sócio do clube, o primeiro presidente e quem dera a ideia do nome. A última mudança radical veio um ano depois. Em 1908, as camisas, brancas com bolso azul cruzado por um X branco, inspiradas em time da comunidade escocesa que foi o primeiro campeão argentino, passaram a ser vermelhas – o azul-marinho “escocês” nos calções e meias foi mantido. Há quem diga que a mudança de camisa foi inspirada no Nottingham Forest (que excursionou na Argentina em 1905), mas a admiração pelas ideias socialistas, das quais Degiorgi e colegas eram adeptos, é que na verdade prevaleceu. O resto da história é mais conhecido e já explicamos boa parte dela em diversos outros especiais. Também a contaremos pelos 11 jogadores que escolhemos para retratar estes 110 anos:
GOLEIRO: Antonio Bello agarrou no bi de 1938-39, com impulsão adquirida no basquete. Teve dez anos de casa. Mas preferimos Miguel Santoro, ainda mais longevo. E que começou na fogueira a escrever sua história: o Independiente chegara à final da Libertadores pela primeira vez em 1964 ao eliminar o Santos de Pelé, então bicampeão. Mas perdeu o então goleiro titular, lesionado. Santoro era a terceira opção no setor, mas foi indagado se toparia agarrar a hostil final em Montevidéu com o Nacional. Contamos aqui: não levou gols e só deixou a posição por vontade própria, após, dez anos depois, ir à Copa 1974. Só de Libertadores, Pepé ergueu ainda as de 1965, 1972 e 1973 também, e puxou a fila dos campeões mundiais de 1973 no primeiro jogo após a taça: um vencido clássico com o Racing na casa rival.
LATERAL-DIREITO: Roberto Pipo Ferreiro passou oito anos, entre 1959 e 1967, participando ativamente das duas primeiras Libertadores vencidas, em 1964-65. Foi também o técnico da primeira Intercontinental ganha, em 1973. Mas fica abaixo de Néstor Clausen, de nove anos só na década de 80, a última com glórias verdadeiras ao Rojo. Começou titular na vitoriosa Copa 1986 e foi cotado também à de 1990. No fim da carreira, El Negro ameaçou perder idolatria ao passar pelo Racing, mas rapidamente corrigiu isso e se despediu na velha casa, erguendo outra taça internacional: a Supercopa 1995, em pleno Maracanã, sobre um Flamengo ainda com chances de ser campeão no centenário.
ZAGUEIROS: a sólida dupla da virada dos anos 70 aos 80, Enzo Trossero e Hugo Villaverde, entrosados desde quando jogavam no Colón. Villaverde passou doze anos nos diablos, o que nos fez afastar as chances do último marechal, Gabriel Milito. Já Trossero, ironicamente, nunca escondeu que era torcedor do Racing. O que não o impediu de defender ardorosamente o rival, não sendo caso isolado: era o capitão daquele elenco de 1983-84, talvez o mais festejado do clube. Aliás, El Vikingo marcou um dos gols naquele clássico de 1983 que garantiu o título argentino sobre o rebaixado Racing – veja.
LATERAL-ESQUERDO: Ricardo Pavoni. Aquele recordista tetra seguido na Libertadores entre 1972-75 teve seu melhor símbolo no xerifão uruguaio que já intimidava no rosto. Os bigodes, porém, não eram de um açougueiro: Maradona chegou a pedir autógrafo ao autor do gol do título da terceira Libertadores da série, sobre o São Paulo, em 1974. Sucesso que naquele mesmo ano havia feito a comissão técnica uruguaia deflagrar crise com jogadores ao convoca-lo à Copa – até então a Celeste não usava quem atuasse no exterior e aqueles que haviam suado nas eliminatórias sentiram-se injustiçados. Para completar, El Chivo estava em Avellaneda desde a década anterior e, com 12 títulos (incluindo seis das sete Libertadores), era o maior campeão rojo até Bochini supera-lo em 1989.
VOLANTE: Antonio Sastre. Historiadores do futebol argentino que priorizam a versatilidade sobre o malabarismo cravam que ele foi o melhor jogador que a Argentina já teve. Recebeu placa nesse sentido em 1970 e o técnico brasileiro Osvaldo Brandão sentenciou nos anos 60 que não entendia a admiração que os argentinos tinham pelo futebol brasileiro, que teria como professor Sastre – protagonista dos primeiros títulos do São Paulo, nos anos 40. El Cuila chegara veterano ao Brasil após brilhar por doze anos em Avellaneda. Seja como meia-atacante, goleiro improvisado ou marcador de lateral. Claudio Marangoni foi o classudíssimo volante dos anos 80, mas escalamos Sastre por ele ter declarado que se sentia melhor nesse setor, com mais panorama do jogo. Saiba mais.
MEIAS: Ricardo Bochini e Ernesto Grillo. O primeiro é o maior ídolo, sem dúvidas: o Rojo foi o único clube onde trabalhou, nele jogou por 20 anos, é o maior campeão, autor do gol do título do primeiro mundial e outro grande ídolo de Maradona. E o Independiente não foi mais o mesmo sem El Bocha, cujos pormenores detalhamos neste outro Especial, só sobre esse craque que deveria ser mais conhecido pelos brasileiros. Grillo também já teve Especial sobre si. O detalhe é que ele, em dez anos de Rojo, jamais pôde ser campeão. Mas era quem ditava o ritmo de um quinteto ofensivo que foi transportado por inteiro para a seleção entre 1953-55, algo nunca alcançado por outro clube no país – veja aqui.
Grillo também fez sucesso na Europa (foi vice da Liga dos Campeões com o Milan, chegando a marcar na final com o Real Madrid de Di Stéfano, surrado por 6-0 pelo Independiente em 1954) e também no Boca, onde capitaneou os vices do Santos na Libertadores 1963. Foi ainda o primeiro a marcar 3 gols em um só clássico com o Racing, em 1950 – algo que Bochini repetiria em 1974. Grillo faria outros três gols em dérbi de 1953, na última rodada, no qual tirou as chances de título do rival.
PONTA-DIREITA: Raúl Bernao era equiparado a Garrincha nos anos 60 e destruiu o Santos de Pelé em um 5-1 em 1964. Daniel Bertoni entendia-se demais com Bochini e marcou na final da Copa 1978. Mas preferimos improvisar o meia-direita Vicente de la Mata, usado na ponta pela seleção na vitoriosa Copa América 1946, sobre o Brasil. Aliás, ele garantiu de cara titularidade no Independiente por causa da seleção brasileira: nove anos antes, em outra Copa América, se transferira durante a competição para o Rojo desde o nanico Central Córdoba de Rosario. El Capote entrou durante a finalíssima e marcou os dois gols do título sobre Leônidas & cia para depois estrear no novo clube e jogar em alto nível por mais de dez anos. Logo foi bi em 1938-39 (confira) e, do trio com Sastre e Erico, foi o único a estar na taça seguinte, em 1948 (torneio que o Racing liderava até a reta final). Seu filho, também Vicente, campeão da Libertadores nos anos 60, foi o primeiro na seleção filho de ex-jogador dela.
CENTROAVANTE: Alfredo Di Stéfano já disse que buscava apenas imitar Arsenio Erico, que sobrepuja tranquilamente matadores do quilate de Luis Artime e Héctor Yazalde. O paraguaio é o maior artilheiro do clube e do futebol argentino, onde deixou 293 gols, e também do clássico com o Racing, vitimado 18 vezes. Foi três vezes seguidas artilheiro do Argentinão, entre 1938-40, embalando o bi de 1938-39, os primeiros títulos profissionais do time e os primeiros desde 1926. Destaque para a artilharia de 1938, com 47 gols em em 34 jogos. Deu azar de ter só 15 anos para jogar a Copa 1930 e em seguida ser um fenômeno em tempos onde as seleções não usavam jogadores do exterior.
PONTA-ESQUERDA: Raimundo Orsi. El Mumo participou dos primeiros dois títulos argentinos, em 1922 e 1926. Após ser medalha de prata nas Olimpíadas de 1928, tornou-se o primeiro jogador do Independiente transferido à Europa: contratado pela Juventus, esteve no primeiro penta seguido já visto na Itália, façanha que ajudou os alvinegros a se tornarem o clube mais popular na Velha Bota. E a Azzurra venceu a Copa de 1934 com gol de Orsi na final. Também está na história como autor do primeiro gol da Doble Visera, inaugurada em um 2-2 com o Peñarol em 1923 como primeiro estádio de cimento da América Latina (o anterior era de madeira e fora destruído em incêndio). A linha que ataque que integrava foi apelidada de Diablos Rojos, hoje sinônimo do time. Falamos mais de Orsi aqui.
TÉCNICO: José Omar Pastoriza, sem dúvidas. O Independiente adiou a festa do centenário programada para o 1 de janeiro de 2005 em respeito às vítimas do incêndio na Cromañón (versão argentina da tragédia na boate Kiss) na antevéspera. Mas os festejos já seriam menos felizes do que poderiam porque meses antes quem falecera fora El Pato, ainda treinando o clube. Estava na última de suas inúmeras passagens no cargo, onde destacou-se especialmente nos fins dos anos 70 e no ciclo dourado de 1983-84, na última Libertadores e Intercontinental vencidas, dominando o então campeão Grêmio no Olímpico e o temido Liverpool da época. Já havia brilhado como jogador, nos anos 60 até a primeira Libertadores daquele tetra, em 1972, antes de partir ao Monaco. Embora tenha passado pelo Racing nas duas funções, foi uma alma do aniversariante. Explicamos aqui.
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