“Um dos direitos do homem consiste em discutir acerca de assuntos que ele ignora por completo: economia, política, medicina, arte, estratégia e outras coisas, mais ou menos difíceis. O futebol não se livra da regra geral”, exaltava a nota “Chacarita For Ever” em edição de 1936 da revista Caras e Caretas, trinta anos após a fundação do Club Atlético Chacarita Juniors. Condizente com as palavras, o Chacarita foi fundado em uma subseção do partido socialista em um 1º de maio. Para outras fontes, seria anarquista. Ou ambos: fato é que traz as cores de cada movimento, o vermelho e o preto.
As origens remontam a um extinto clube chamado Defensores de Villa Crespo, do bairro vizinho ao de La Chacarita (“Pequena Chácara”, em espanhol). José Manuel Lema reuniu os colegas Máximo Lema, Alfredo Lema, Manuel Andrés Lema, Arístides Ronchieri, Juan Faccio, Antonio Fernández, Andrés Ducace e Eduardo Ducace e os convenceu a fundar um clube novo. Jogavam no bairro de Villa Crespo, mas moravam no de Chacarita e assim Chacarita deveria batizar a equipe. Estava em voga usar nomenclatura inglesa, que foi condizente com aquele espírito: surgiam os “filhos de Chacarita”.
O primeiro selo, essencial para formalizar o clube, foi pago após coleta de jornais lidos para a revenda do papel. Já a primeira bola foi oferecida com a condição de que os tricolores enfrentassem o Defensores de Villa Crespo, do qual haviam se desligado (ela só durou quinze minutos, quando foi estourada) os funebreros, apelido oriundo do cemitério de Chacarita – o maior da América do Sul e onde jazem Carlos Gardel e Ástor Piazzolla, dentre outros. Já a biblioteca, seja de qual corrente tenha sido, não os amparou por muito tempo. Nos primórdios, a sede precisou ser revezada algumas vezes, incluindo uma tabacaria na esquina da Ribera com Leones e uma leiteria na rua Jorge Newbery, ou, nos dias de chuva, um galpão nos fundos da casa do fundador Gallego Fernández.
O Chacarita se estagnou. Nunca chegou a ser definitivamente dissolvido, mas não raro ficava em inatividade. Teve novo impulso em 1919, quando novos sócios, liderados por Samuel Sívori e Santiago Piaggio, reorganizaram a coisa. Queriam até mudar o nome da instituição, mas os veteranos, incluindo o “patrono” José Lema, bateram o pé.
Mas a retomada foi para valer: em 1920, enfim o Chaca se afiliou na associação argentina de futebol. Em 1921, começou a competir com diferentes quadros em campeonatos das divisões inferiores. Em 1922, a equipe principal foi 4ª na sua zona. Em 1923, perdeu a classificação aos mata-matas decisivos por um ponto que o San Martín conquistou no tapetão. Em 1924, enfim, o acesso à elite foi logrado, e de forma invicta. A final foi um 2-1 sobre o time de reservas do Boca.
De destaques, o jovem maestro Renato Cesarini e o capitão José Gaslini, quem dera a ideia de se usar meias vermelhas em tempos onde normalmente todos os clubes usavam meias pretas – argumentou que, em um jogo de pés, essa parte do corpo era mais observada que as partes superiores. A dupla foi os primeiros funebreros na seleção argentina, respectivamente em 1926 e 1925. O emocionado presidente ainda era José Lema. No primeiro ano na elite, em 1925, o Chacarita foi 5º colocado. Até 1930, só deixou duas vezes de figurar entre os dez primeiros. Em 1931, os principais clubes argentinos romperam com a amadora associação para fundar uma liga profissional. E o Chaca esteve incluso. Dos clubes historicamente mais assíduos na elite, foi o último a se juntar.
O começo da nova era, porém não chegou a ser uma maravilha; atrasos de salários eram notícia já nos anos 30. Em 1940, houve o primeiro rebaixamento (o retorno foi imediato). E no início da nova década o clube foi desalojado de seu estádio na rua Humboldt por atrasar o aluguel. Deixou a fronteira de Villa Crespo e Chacarita e arrumou casa na cidade de San Martín, onde está até hoje, sem que isso arrefecesse a rivalidade com o Atlanta: outro clube de Villa Crespo, os auriazuis, que tinham estádio na mesma rua, expandiram-no sobre o terreno da área rival após compra-la. Embora o Atlanta tenha se consagrado o clube da comunidade judaica tão presente em Villa Crespo, a presença funebrera por lá havia angariado israelitas para si também (José Lighterman passou pela seleção, Luis Abramovich estaria no acesso à elite em 1984, José Pekerman começou no Chaca sua trajetória de técnico e Nicolás Tauber, torcedor confesso, esteve no acesso à elite em 2009).
O clásico de Villa Crespo segue sendo o terceiro mais expressivo da capital federal, atrás de Huracán x San Lorenzo e, claro, Boca x River. Seu auge mútuo foi nos anos 60, do qual pinçamos boa parte dos jogadores que contarão mais da história funebrera, cujo momento-mor de grandeza, é claro, foi o título argentino de 1969 – com direito a eliminar nas semifinais o Racing campeão mundial um ano e meio antes e golear por 4-1 na final o River. O clube seguiu nas cabeças por um tempo e foram dois ex-jogadores seus daquela época os primeiros que a Argentina usou do futebol europeu: o goleiro Daniel Carnevali (Las Palmas) e o beque Ángel Bargas (Nantes), ambos titulares na Copa de 1974. E já foi muito votado em eleições informais para definir o “sexto grande” time do país.
Vamos aos eleitos:
GOLEIRO: Carnevali seria a opção mais óbvia pelo feito mencionado acima e não haveria maiores dúvidas se fosse ele o arqueiro do título de 1969 – posto de Eliseo Petrocelli; Carnevali jogava justamente no Atlanta naquele ano, virando posteriormente a casaca. Eduardo Alterio é mais lembrado por ter sido o primeiro goleiro a marcar um gol no profissionalismo argentino (contra o Tigre, contra quem os funebreros alimentariam nas últimas décadas uma rivalidade paralela). A vaga é de Isaac López, titular por quinze anos, entre 1937 e 1952. Negava ofertas de River e Boca para seguir tricolor. Com um jogo pela seleção, em 1943, ele é quem mais defendeu o Chaca, 376. Vale registro aos folclóricos Carlos Navarro Montoya, que, veterano, foi titular no 4º lugar em 2002; e Luis Islas, revelado em San Martín quatro anos antes de vencer a Copa do Mundo de 1986.
LATERAL-DIREITO: Manuel Aragüez. Um dos melhores zagueiros argentinos dos anos 30, é o único jogador que defendeu a seleção vindo do pequeno Argentino de Rosario. Permaneceu nela como funebrero. Enquanto o Chacarita era rebaixado em 1940, Aragüez naquele ano ganhou de 3-0 do Brasil em São Paulo, por 6-1 em Buenos Aires e por 5-1 em Avellaneda.
ZAGUEIROS: Juan Carlos Iribarren e Ángel Bargas. Já falamos de Bargas mais acima. Antes de ser o primeiro usado pela seleção importado do futebol europeu, em 1972, ele já era quem mais a defendera vindo do Chacarita (16). Foram sete anos no time, entre 1965 e 1972. Além do título em 1969, Bargas e o Chaca também foram semifinalistas em 1970 e terceiros em 1971, quando venceram no tradicional Troféu Joan Gamper o Bayern Munique por 2-0. Após a venda do beque em 1972, o clube chegou a ser 4º colocado no Apertura 2002, mas treze pontos atrás do campeão, nunca mais brigando a sério por títulos na elite. Já Iribarren está entre os cinco mais veteranos que defenderam a Argentina.
El Vasco chegou a ser o recordista de jogos pela seleção, a qual defendera nos anos 20 como atleta de Argentinos Jrs e River. Era funebrero e veterano quando sua categoria foi retomada pela Albiceleste após seis anos, em 1936, vencendo a Copa América de 1937 (sobre o Brasil). Vale menção ao zagueiro-artilheiro Mariano Echeverría, que em 2010 foi o primeiro jogador do clube que a seleção usou desde 1973. O problema é que virou a casaca, indo ao Tigre no mesmo ano.
LATERAL-ESQUERDO: Alberto Mariotti. Deu o azar de ser contemporâneo de Silvio Marzolini, nome intocável da seleção argentina na posição nos anos 60 e eleito o melhor da posição na Copa de 1966. Mariotti foi reserva dele na de 1962, como recém-contratado do San Lorenzo. Havia antes passado seis anos em San Martín, vencendo a segunda divisão de 1959.
MEIAS: na retaguarda, Carlos Puntorero e Claudio Marangoni. Puntorero é o único escolhido que nunca jogou pela seleção, mas foi raríssimo ídolo tanto no Atlanta como no Chacarita (veja aqui). Sobre ele, usaremos palavras de Roberto Fontanarrosa, célebre escritor argentino. Ao recordar o título de 1969, Fontanarrosa disse que “o esforço, por exemplo, podia estar representado em Puntorero, um moreno esguio, magro e fibroso que, se alguém não conhecesse suas origens, poderia pensar que se tratava de um maratonista queniano (…). Puntorero era incansável, infatigável e imperecível. Mas, além disso, hábil, técnico, capaz de recuperar a bola e gerar jogo”.
Marangoni foi um dos mais elegantes volantes do futebol argentino, brilhando nos anos 70 e 80. Maranga foi revelado no Chacarita em 1974, no fim da fase áurea. Dali só saiu para voos distantes, sendo um dos primeiros argentinos no futebol inglês (no Sunderland, em 1979), ou para gigantes, brilhando no San Lorenzo e principalmente no Independiente e no Boca. Toda a sua classe pode ser vista contra o Liverpool no último mundial ganho pelo Independiente, em 1984: veja aqui.
O meia-armador é uma posição problemática no bom sentido. Raúl Savoy, campeão da segundona de 1959 que venceria as primeiras Libertadores do futebol argentino (bi em 1964-65 pelo Independiente)? Carlos García Cambón, campeão em 1969 (mas reserva) e maior artilheiro dos clássicos com o Atlanta (e célebre pelos quatro gols em um 5-4 no River em sua estreia pelo Boca, em 1974)? Não há como arredar Francisco Campana. Somou nove anos de Chaca, tendo sua tarde de glória em um 5-1 no Boca em 1948 quando marcou quatro gols mesmo com os funebreros jogando com um a menos. Campeão da Copa América 1947, é quem mais gols fez pelo Chacarita na elite argentina.
ATACANTES: na ponta-direita, o capitão do título de 1969, Ángel Marcos. Foi dele o gol que praticamente liquidou a taça, o terceiro na vitória por 4-1 sobre o River. Como o outro Ángel, o Bargas, foi vendido ao Nantes no início dos anos 70 e a partir daí o Chacarita já não seria o mesmo. A outra ponta poderia ter Horacio Neumann, que fez os primeiros dois gols daquela final, ou ainda Marcos Busico, dos anos 40. Ficaremos, contudo, com o veloz Roberto Brookes. El Inglés teve ótima média de gols para um ponta (58 em 181 jogos) e foi convocado à vitoriosa Copa América de 1959 mesmo com o time na segundona – da qual seria campeão.
De centroavante, Mario Rodríguez foi outro que venceu a segundona em 1959, reeditando a dupla com Raúl Savoy no Independiente bi da Libertadores em 1964 (fazendo o gol do título) e 1965. Mas Renato Cesarini foi muito mais representativo ao clube e ao futebol. Vencedor da segundona em 1924, El Tano foi o segundo funebrero na seleção e foi primordial para a Juventus se tornar uma gigante na Itália, sendo pentacampeão por lá de 1931 a 1935, tendo ainda medalha de campeão da Copa do Mundo de 1934. Na Argentina, também criou a célebre La Máquina do River dos anos 40. Havia voltado aos tricolores em 1936, rumando ainda como jogador ao River um semestre depois – sinal de prestígio.
TÉCNICO: Federico Pizarro, ex-zagueiro do clube que chegou à seleção, foi o técnico que ergueu a taça em 1969. O título reforçou a percepção que uma era se encerrava, sendo desde 1930 o terceiro, em três anos seguidos, de uma equipe fora do grupelho dos “cinco grandes” (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo; o Estudiantes vencera em 1967 e o Vélez, em 1968). Pizarro seria o óbvio, mas ele só assumiu na reta final. Não foi tão revolucionário como a chegada do homem à lua (dali a alguns dias) na trajetória de quem realmente armou aquela equipe, Argentino Geronazzo, que saíra por não ter tido aumento salarial por ter reformulado um time desastrado que antes brigava para não cair e que na década era ofuscado pelo Atlanta: último colocado em 1965 e 1966, o time não caíra por não haver rebaixamento. Último em 1967, não caiu pois havia repescagem, disputada também em 1968… familiar com um certo time sensação na Inglaterra na temporada 2015-16?
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