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100 anos do maior jogador do Independiente na 1ª metade do século XX: Vicente de la Mata, herói da 1ª final Brasil x Argentina

Antes de virar o bicho-papão da Libertadores, o Independiente já tinha um rica história na primeira metade do século XX, construída por nomes como o autor do gol do primeiro título da Itália em Copas do Mundo (Raimundo Orsi, ex-Flamengo), o maior artilheiro do futebol argentino (Arsenio Erico) ou aquele descrito como o jogador mais polifuncional da história (o ídolo são-paulino Antonio Sastre). Mas as estatísticas reforçam a validade na percepção de que foi Vicente de la Mata o maior jogador do Rojo até o clube virar também El Rey de Copas – fase esta, aliás, que não deixou de glorificar o nome Vicente de la Mata. Hoje completaria cem anos o segundo maior artilheiro do clube. E que, ainda menor de idade, também decidiu a primeira Copa América a ter uma final entre Brasil e Argentina.

O primeiro feito de De la Mata foi um título de liga rosarina, em tempos em que Rosario Central e Newell’s ainda estavam restritos a ela. A dupla só integraria o campeonato argentino a partir de 1939, e naturalmente dominava o torneio local. Nesse cenário, o meia conseguiu ser campeão por uma outra equipe, em 1936. Foi pelo Central Córdoba, oriundo da ferrovia de mesmo nome. Estreou pelo Charrúa um ano antes. Embora o astro rubroazul continuasse sendo o veterano Gabino Sosa, El Payador de la Redonda (“O Repentista da Redonda”), membro da seleção argentina campeã pela primeira vez da Copa América (em 1921), o feito valeu ao jovem a convocação à edição de 1937.

Essa Copa América de 1937, sediada em Buenos Aires, foi iniciada ainda em 27 de dezembro de 1936. A estreia de De la Mata pela Albiceleste deu-se exatamente no dia seguinte ao 19º aniversário do jogador. Foi em 16 de janeiro de 1937, na terceira partida dos anfitriões, que venceram  por 1-0 o Peru. Entrou aos 16 minutos do segundo tempo, substituindo Roberto Cherro, maior artilheiro do Boca no século passado. O resultado foi mantido apesar da posterior expulsão da Antonio Sastre, já um emblema do Independiente. E que teria originado o apelido famoso do colega, possivelmente criado naquela competição: “venha, que juntos faremos Capote“, uma gíria sem qualquer relação com o escritor Truman Capote (que ainda tinha 13 anos). Sastre queria dizer “fazer estrondo”, “fazer história” e afins.

De fato, em 31 de janeiro, com a Copa América ainda em andamento, foi acertada por 30 mil pesos a transferência do adolescente ao Independiente – embora já tivesse 19 anos, pela legislação da época De la Mata ainda era menor de idade, fazendo-se necessária a assinatura de seu pai para representa-lo no contrato. Na véspera, sem ele (que não havia se saído bem em sua segunda partida, a primeira como titular, na derrota de 3-2 para o Uruguai, sendo até substituído no intervalo), a Argentina havia vencido na véspera o Brasil por 1-0, na última partida do calendário regular. A vitória argentina não foi tranquila: brasileiros cercaram o árbitro uruguaio Aníbal Tejada, que, ultrajado, recusou-se a apitar o jogo-extra (a cargo do também uruguaio Luis Mirábal). A primeira final “real oficial” entre os dois.

Mas Mirábal não escapou de polêmicas, muito maiores. Mas nem por isso do nível da manchete “Quase Chacinados” do Jornal dos Sports. “Na verdade, perdemos porque eles jogaram melhor”, assumiria décadas depois à Placar o atacante Tim (ainda na Portuguesa Santista!) sobre o tal “jogo da vergonha”” Já o livro Brasil x Argentina – Histórias do Maior Clássico do Futebol (1908-2008), de Newton César de Oliveira Santos, não esconde um jogo ríspido desde o início, especialmente no primeiro tempo. Mas igualmente o desmistifica – detalhamos o porquê nesse outro Especial.

Em suas duas etapas no Central Córdoba: ainda sem bigode, como coadjuvante do astro Gabino Sosa, e como consagrado veterano

Faltando seis minutos, Francisco Varallo deu lugar à nova chance para De la Mata. E às 00h45 na primeira Copa América a contar com jogos noturnos, começou a prorrogação, “intensa, mas limpa”, conforme o livro. Com os dois times extenuados a ponto de mal concluírem as jogadas, o fôlego de De la Mata fez a diferença: aos quatro minutos do segundo tempo, ele abriu o placar, chutando forte uma bola limpa que sobrou em dividida aérea entre Bernabé Ferreyra, Jaú e o goleiro Jurandir (que jogaria na Argentina por Ferro Carril Oeste e Gimnasia LP).

Três minutos depois, o garoto matou o jogo. Recebeu de Peucelle e, mesmo entre dois adversários, desferiu um chute indefensável, gerando algum protesto por suposto impedimento. Mas nada que os impedisse de reconhecer a derrota – alguns brasileiros até se juntaram diplomaticamente aos hermanos na volta olímpica. E no decorrer do ano de 1937 De la Mata (que, segundo familiares, não encerrou aquela final sorrindo e sim chateado pelos poucos minutos em campo) também não sentiu o peso da camisa roja.

O novato teve média superior a meio gol por jogo mesmo na companhia do superartilheiro Arsenio Erico. Vazou todos os grandes, menos o Racing. O desempenho não impediu um vice, seis pontos abaixo do River. Mas título não escaparia em 1938. Foi o primeiro do Independiente no profissionalismo e o primeiro desde 1926. Erico foi o artilheiro com incríveis 43 gols, ofuscando um desempenho impressionante do Capote, que fez 27 em 28 jogos. Só no Boca, foram cinco gols: os três do 3-0 em Avellaneda e dois em 4-0 no estádio do San Lorenzo, onde os auriazuis foram mandantes. No jogo do título, fez metade de uma goleada de OITO gols sobre o Lanús, anotando o segundo, o quarto, o sexto e o último nos 8-2 sobre o Granate. Se o clube já tinha Erico e Sastre havia alguns anos, foi com De la Mata presente que enfim parece ter se completado rumo às taças.

Se De la Mata foi do tempo pré-Libertadores, não deixou de copar internacionalmente. Em dezembro de 1938, Independiente e o campeão uruguaio, o Peñarol, se encontraram no extinto tira-teima que definia oficialmente o melhor time do Rio da Prata, a Copa Ricardo Aldao. Em jogo único no estádio do San Lorenzo, os aurinegros abriram o marcador. E De la Mata fez o gol do empate na vitória de virada por 3-1.

Em fevereiro do ano seguinte, era a vez da Copa Ibarguren, que por sua vez definia moralmente a melhor equipe argentina, em tira-teima entre o vencedor do campeonato argentino (ainda restrito à Grande Buenos Aires e La Plata) e o da liga rosarina. Novamente, o estádio do San Lorenzo foi o palco do jogo único. Com El Capote marcando três vezes em nova virada, esta por 5-3. A torcida roja podia gabar-se de uma tríplice coroa. A história se repetiria em 1939…

Como solitário astro do Independiente em 1945. À direita, reprodução do seu gol mais famoso, o maradoniano lance contra o River em meio à campanha campeã de 1939

Individualmente, os números do meia diminuíram para “apenas” 19 gols em 33 jogos. Mas um deles serviu para eternizar o meia, ainda que registrado apenas por fotografias. Em jogada maradoniana, recebeu do goleiro Fernando Bello e saiu da lateral direita rumo à ponta esquerda, driblando no caminho meio time adversário no caminho. Era o River, enfrentado em pleno Monumental. E os driblados na trajetória foram José Manuel Moreno (duas vezes), José María Minella, Luis Vassini, Carlos Santamaría e Alberto Cuello. De la Mata, sem ângulo, poderia então repassar a Erico, que vinha pelo meio. Mas arriscou a conclusão e acertou no espaço entre o goleiro Sebastián Sirni e a trave. O Rojo venceu por 3-2, com El Capote marcando outra vez, resultado que respingou na história do oponente.

O astro millonario Moreno foi suspenso pela diretoria e seus colegas se solidarizaram, fazendo greve. Juvenis então foram promovidos, permitindo as primeiras chances de ídolos como Ángel Labruna e Juan Carlos Muñoz (que, torcedor do Independiente, contou que assistiu aquela partida nas arquibancadas e não deixou de vibrar com o golaço de De la Mata) entre os titulares. O meia também deixou o dele sobre Boca (dois num 5-2) e no San Lorenzo (outros dois em 3-0 fora de casa), além de outro no jogo do título. Foi o segundo no 2-0 sobre o Platense ainda na antepenúltima rodada. “A gente já se mata para ver De la Mata” e “aonde vai a gente? Para ver Don Vicente” eram os cânticos das arquibancadas.

A tríplice coroa veio novamente. Dessa vez, jogou-se primeiro a Copa Ibarguren, já em março de 1940. E De la Mata foi profissional ao marcar o segundo gol de um 5-0 impiedoso no Central Córdoba (treinado por Gabino Sosa e onde jogava Francisco de la Mata, irmão do craque). O ex-clube de De la Mata havia sido campeão rosarino de 1939, na ausência da dupla Newell’s e Rosario Central. Circunstância que não diminuía o mérito rojo: na Copa Aldao, em julho, simplesmente o mesmo placar de 5-0 foi reproduzido, dessa vez no Nacional que iniciava o primeiro Quinquenio de Oro do futebol uruguaio. De la Mata anotou o último, gentilmente cedido por Erico, que poderia ter marcado mas preferiu retribuir as duas assistências que o parceiro havia lhe proporcionado.

Em 1940, o Independiente não conseguiu o tri, a seis pontos de um Boca que inaugurava a Bombonera, mas que levou de 7-1 daquele Rojo. Essa ainda é a pior goleada sofrida pelos xeneizes na Argentina. Assim como o 7-0 é a maior goleada do Clásico de Avellaneda. Foi outro resultado obtido por um Independiente que também fez 5-0 no Vélez (três de De la Mata) e 8-1 no Estudiantes. El Capote marcou duas vezes naquela goleada no Racing, contra quem marcou também no 1-1 no primeiro turno. Resolvia sua última “pendência”, pois até 1940 não havia marcado no clássico; após desencantar, viria a somar dez gols sobre o arquirrival. Naquele ano, o ídolo ainda seguia morando com a família em uma pensão no bairro de Flores, não fazendo questão de casa própria.

Mas, apesar dos seguidos títulos de De la Mata no clube, a seleção dava-se ao luxo de não contar com ele desde aquela final com o Brasil. O meia só voltou a jogar pela Argentina em 1943. Dali até fevereiro de 1946, foi nome cativo nas convocações. Ironicamente, seu Independiente perdia fôlego.

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O Independiente campeão da Libertadores de 1965. Vicente de la Mata, o filho, aparece ao centro – é o último homem na metade esquerda da foto. Seria eleito o melhor em campo no último jogo das finais com o Peñarol

Sastre e Erico haviam saído e o poder de fogo de De la Mata decrescia: dos 152 gols que fez entre 1937 e 1950, metade saiu apenas entre 1937 e 1941. De 1942 em diante, só em 1943 ele passou dos dez gols pelo Rojo. Era o corpo cobrando aquele temperamental jogador que não descansava entre um jogo profissional e outro, participando ativamente de peladas de várzea “absolutamente nocivos para suas pernas e necessários para sua alma”, nas palavras da El Gráfico. Mas paralelamente, ele marcava dois gols em três partidas na vitoriosa Copa América de 1945. De la Mata também jogou a Copa América de 1946 e foi novamente campeão. Mas a campanha lhe foi agridoce. Desperdiça-lo era uma heresia, mas El Capote, para poder jogar, foi improvisado na ponta-direita – a meia-direita era de Adolfo Pedernera, considerado por Alfredo Di Stéfano o maior jogador que vira.

Brasil e Argentina voltaram a se enfrentar na rodada final, em confronto direto pelo título. O jogo foi novamente marcado por polêmicas, com uma briga generalizada acarretada pela fratura do capitão argentino José Salomón (acendendo ainda mais uma pólvora apimentada pelo fato de no jogo anterior entre os dois países, dois meses antes, ocorrer outra fratura argentina, de José Battagliero, que inclusive “desfilou” de maca antes daquela revanche). El Capote foi um dos expulsos, ainda aos 30 do primeiro tempo. Foi sua última partida pela Argentina, que rompeu relações com a CBD por dez anos. O Independiente, por sua vez, só conseguiu ficar duas vezes no pódio entre 1941 e 1947, ambas em terceiro e sem brigar a sério pela taça. O cenário só não era pior pois o vizinho Racing sofria jejum ainda mais periclitante, desde 1925. Em 1948, parecia que o rival resolveria sua seca.

O Racing liderava, mas com o Rojo no encalço. Foi o ano da famosa greve de jogadores que, não atendida, levaria muitos ao Eldorado Colombiano (como Di Stéfano e Pedernera). Os clubes não cederam e completaram com juvenis os seus compromissos. A mudança não fez bem ao Racing, que nem no pódio ficou. O Independiente, por sua vez, voltou a ser campeão. De la Mata, mesmo ausente da reta final jogada pelos juvenis, era o único remanescente dos titulares de 1938-39. Isso e os títulos copeiros faziam dele o jogador mais vitorioso do clube (que só voltaria em 1960 a ser campeão) na era pré-Libertadores. O ídolo seguiu em Avellaneda por mais duas temporadas. Em ambas, o Racing conseguiu o título, ofuscando o bom terceiro lugar rojo em 1950 – ano em que o Independiente bateu fora de casa por 4-2 o rival, com o décimo gol de De la Mata (então jogador-treinador) no clássico.

Ele voltou a Rosario para uma breve passagem pelo Newell’s antes de pendurar as chuteiras na segundona no seu velho Central Córdoba. Já nos anos 70, resmungava contra equipes excessivamente preocupadas com especulação e marcação em vez de proporem um jogo francamente aberto, declarando que somente Maradona, Ricardo Bochini e Beto Alonso seriam capazes de brilhar nos anos 40. Na década anterior, viu o filho várias vezes campeão no mesmo clube. Também chamado Vicente de la Mata, El Capotito esteve nos dois primeiros títulos da Libertadores, marcando um dos gols do de 1965 sobre o Peñarol e sendo inclusive eleito o melhor em campo no terceiro e último jogo das finais.

Vicentito de la Mata também jogou pela seleção, entre os pré-convocados à Copa de 1966 – uma lesão após o último amistoso pré-Copa impediu-lhe a efetivação. Eles foram o primeiro caso de pai e filho na Albiceleste, e quase o único no século XX até serem sucedidos nos anos 90 pelos Verón. De la Mata, o filho, penduraria as chuteiras em alto estilo, no histórico Clásico de Avellaneda no qual o Independiente conseguiu ser campeão em pleno estádio rival no Metropolitano de 1970, com o gol da virada por 3-2 sobre o Racing saindo a dez minutos do fim. De la Mata, o pai, faleceu em 4 de agosto de 1980, na Rosario natal.

O pai pela Argentina em 1946 e seu filho em 1966: os De la Mata foram o primeiro caso de pai & filho pela seleção. À direita, o filho em 2005, com o desenho daquele gol do pai sobre o River: “o Rojo é uma tradição em casa”

 

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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