Maradona não poderia ter nascido em data mais simbólica: se em 1960 o dia 30 de outubro marcou a chegada de Diego a esse mundo, em 1921 assinalou a primeira vez em que a Argentina sagrou-se campeã da Copa América, que já era disputada pela quinta vez. Outrora a equipe dominante nos anos 1900, quando era constituída essencialmente por pioneiros britânicos, a Albiceleste vinha de entressafra nos anos 10. Aquela conquista já foi protagonizada pela primeira geração realmente dourada no país, a que, nas palavras do historiador Esteban Bekerman, deu “ao futebol o empurrão que faltava para se transformar em paixões das multidões”. Multidões que carregaram seus heróis desde o periférico bairro de Barracas até a Praça de Maio, na maior euforia pública nacional até as Copas de 1978 e 1986.
O CONTEXTO
O título foi seminal para a popularizar de vez o futebol no país, após uma década em que o esporte gradualmente desvencilhou-se da fechada comunidade britânica, que voltou suas atenções a rúgbi. Algo importante nesse sentido foi justamente o fato de a Albiceleste, pela primeira vez, buscar jogadores para além da Grande Buenos Aires e de Rosario – ainda que por forças de circunstâncias além dos gramados. É que em agosto de 1919 houve uma cisão no campeonato argentino, levando boa parte dos principais clubes a manterem-se ativos em uma liga “pirata”.
Tudo começou quando a então Associação Argentina de Football rejeitou as nomeações de representantes de alguns clubes, que ignoraram a postura. Ela então os suspendeu provisoriamente as afiliações deles: eram nada menos que o multicampeão Racing (então hexacampeão seguido, desde 1913), o então bivice River, o já tradicional Independiente (que liderava o certame de 1919), além de Platense, Tigre e Estudiantil Porteño. Embora a medida tivesse caráter temporário e não fosse uma expulsão definitiva, os clubes receberam solidariedade: San Lorenzo, Gimnasia LP, Atlanta, Defensores de Belgrano, Estudiantes de Buenos Aires e San Isidro insistiram que a penalidade fosse revista.
Irredutível, a AAF reagiu expulsando a todos eles, que então criaram a dissidente Associação de Amadores – ainda que o amadorismo já começasse a ser de fachada, como seria denunciado ao longo da década. Boca e Huracán remanesceram como principais clubes da AAF, em duopólio que lhes rendeu seus primeiros títulos argentinos justamente a partir daquele cisma; o Estudiantes de La Plata era outra camisa tradicional a permanecer, mas sem brilho na época. As duas ligas se reunificaram em 1927, o que convalidou como oficiais também os campeonatos da liga dissidente (o que incluiu o histórico heptacampeonato racinguista e os primeiros títulos de River, Independiente e San Lorenzo), mas até lá a falta de chancela oficial da FIFA para o torneio dos renegados acarretou também na sentida impossibilidade de seus craques reforçarem a seleção nacional.
Curiosamente, não era apenas a Argentina que se privava de estrelas por fatores políticos. Friedenreich e demais astros paulistas (muitos, negros ou, como Fried, mestiços, preocupando na visão racista do presidente brasileiro Epitácio Pessoa uma má impressão eugênica que a seleção poderia passar em Buenos Aires) não foram liberados para a CBD. Ela foi representada basicamente pelo ainda embranquecido futebol carioca com os “intrusos” Gonçalo Pena e Maxomba, ambos do Coritiba – e isso que outro convocado havia sido o lateral-direito Suíço, do Paysandu, mas que não pôde embarcar após a confederação ver-se sem fundos para arcar com sua viagem naval desde Belém depois de um golpe financeiro do próprio tesoureiro.
Os quatro grandes cariocas eram então Flamengo (a ceder Candiota, Dino, Kuntz, Nonô, Orlandinho e Telefone), Fluminense (Laís, Machado, Paulo Viana e Zezé), Botafogo (Alfredinho) e America (Barata). Além desse quarteto, foram representados Bangu (Frederico) e até mesmo o São Cristóvão (Carnaval) e o extinto Andaraí (Caratório); o Vasco ainda não havia popularizado jogadores negros no Rio, continuando a ser em 1921 uma equipe de segunda divisão no estadual, distante da grandeza que viria a adquirir. Os argentinos, por sua vez, variavam seus convocados para além da dupla Boca e Huracán. Falemos dos campeões.
OS CAMPEÕES
O Boca, então bicampeão seguido, forneceu Calomino, López, Tesorieri e Elli, que não chegou a entrar em campo. Os huracanenses, por sua vez, se limitaram ao goleiro reserva Kiessel (que também não entrou em campo) e ao ponta Chavín, que voltava ao time após ter participado do histórico título inaugural do River, na liga dissidente de 1920 – cuja edição só fora finalizada em janeiro daquele 1921. Mais presente era o Newell’s; eram tempos em que o campeonato argentino (seja o oficial, seja o dissidente) se restringia à Grande Buenos Aires e La Plata, apesar do nome, restringindo as equipes rosarinas à sua liga municipal. Os rojinegros, que seriam os campeões rosarinos daquele 1921, foram representados por Saruppo, Celli e o principal herói da conquista: Libonatti.
Argentinos já jogavam na Europa na época, mas desde que houvessem crescido naquele continente. Libonatti seria o primeiro efetivamente contratado por um clube europeu, dali a alguns anos, sendo o homem-gol do primeiro título italiano do Torino; até seria usado pela seleção italiana também. A liga rosarina também forneceu jogadores do Central Córdoba (o cracaço Gabino Sosa) e do Belgrano (Bearzotti), clubes que não devem ser confundidos com os times de mesmo nome de Santiago del Estero (figurante atual na primeira divisão argentina) e do de Córdoba – este, também representado na seleção de 1921 precisamente com o primeiro jogador que a Albiceleste prestigiou de uma equipe cordobesa. Tratava-se do capitão Dellavalle. Um segundo jogador a vir da um time de Córdoba à seleção demoraria mais de 50 anos. E seria Mario Kempes, do Instituto.
Nascido em 1901, o suficiente para ainda ser considerado um adolescente pelas leis da época, Vicente González era outro interiorano incomum: vinha do Gimnasia de Mendoza, com a revista El Gráfico lembrando-se dele ao recordar já em 1949 o título como “um menino precoce, a quem teve de pôr calça comprida e obter permissão dos pais para que fizesse a viagem”. Calça comprida, na época, era item de vestuário que indicava a passagem à vida adulta. Além da dupla Boca e Huracán, o campeonato argentino “oficial” fez-se presente ainda com um jogador cada de Estudiantes (Echeverría), Nueva Chicago (Solari) e até com o Porteño (Presta), clube fundado por irlandeses que, em curto prazo, fecharia seu departamento de futebol para voltar-se ao rúgbi. Foi, precisamente, o último campeão da “era britânica”, em 1912.
A campanha ainda serviu para redimir dois jogadores em especial. Celli já vinha de três partidas pela seleção e perdido todas, “o que foi um recorde negativo por quase seis décadas”, nas palavras de seu perfil no livro Quién es Quién en la Selección Argentina, publicado em 2010. O mesmo livro destacou que Calomino, incrivelmente, somou mais derrotas (15) do que vitórias (13) em seus 38 jogos pela seleção, que fizeram dele o recordista de partidas pela Argentina até ser superado nos anos 40 por José Salomón.
Considerado o pai da jogada de pedalada e ainda o jogador de linha do Boca mais vezes usado pela seleção (somente dois goleiros do clube o superaram em jogos pela Albiceleste: o colega Tesorieri e Antonio Roma), Calomino já foi detalhado neste outro Especial pelo Futebol Portenho. Gabino Sosa, “o Repentista da Redonda”, também teve seu próprio Especial. Para saber mais dos outros campeões, transcrevemos abaixo os trechos mais pertinentes dos perfis de cada um no referido livro Quién es Quién en la Selección Argentina, de Julio Macías. A exceção é o caso de Elli, que jamais entrou em campo pela Albiceleste – as palavras referentes a ele saíram da edição especial em que a revista El Gráfico elegeu em 2010 os cem maiores ídolos do Boca:
“Florindo Bearzotti. Zagueiro central. 15 partidas (1920-24). Forte defensor rosarino, ressaltava por sua potência e fortaleza. Na seleção, teve o raro privilégio de formar duas recordas duplas da retaguarda. A primeira, com o também rosarino Adolfo Celli e, depois da séria lesão de seu companheiro, com o notável Ludovico Bidoglio. (…) É um dos cinco jogadores que o Belgrano de Rosario cedeu à seleção e, óbvio, o que mais encontros disputou”.
Adolfo Celli. Zagueiro central. 15 partidas (1919-24). El Alemán. Jogador de grandes condições atléticas, podia desempenhar-se em qualquer dos lados, sempre como back, o posto que logo se converteu em zagueiro. Ágil e seguro, sua estampa se destacou claramente e representou a clássica escola rosarina. Na seleção, compôs sobretudo com Florindo Bearzotti uma destacada parceria, ainda que Celli se complementasse bem com o companheiro que lhe calhasse”.
Jaime Chavín. Ponta-esquerda. 4 partidas (1918-21). El Rusito del pañuelito blanco. Integrante de uma famosa equipe do Huracán no amadorismoa rgentino. Na seleção, sempre esteve relegado, por isso suas atuações foram muito esparsas.
Miguel Dellavalle. Centromédio. 8 partidas (1920-22). El Negro. Grande ídolo da província de Córdoba, já que se converteu no primeiro jogador que, proveniente de um clube dessa província (o Belgrano), se incorporou à seleção nacional. Com o tempo, isso se converteu em um rico costume, já que a equipe nacional sempre se viu enfeitada com notáveis futebolistas cordobeses. Uma vez que se retirou da atividade, o governo provincial lhe deu um posto como oficial de polícia, mas nunca logrou superar a depressão o ex-jogador, tampouco seu vício em álcool, e se suicidou com a arma da corporação. (…) É um dos três jogadores que, do Belgrano, atuaram na seleção.
Raúl Echeverría. Meia-esquerda. 8 partidas (1920-22). Jogador de boas características, com muita facilidade para chegar ao gol.
Alfredo Elli. Seu grande porte físico lhe tirava a velocidade necessária para atuar como half esquerdo e cobrir o acionar do wing direito rival, mas solucionava isso antecipando a jogada. Chegou ao Boca como sócio em 1915 e dois anos depois ganhou um lugar no time principal, o qual não abandonaria por mais de uma década. Integrante da primeira equipe campeã, em 1919, Elli era um adiantado para a época: não possuía dotes técnicos para brilhar, mas compensava esse déficit com seu senso de jogo e o panorama que o faziam estar onde a equipe o precisasse. Seu estilo de jogo de constante ir e vir, anos depois, se converteria em uma exigência dos torcedores xeneizes. (…). Durante seus onze anos, ninguém lhe discutiu a titularidade. Quando ele sentiu que já não podia aportar a mesma entrega que o público boquense merecia, tomou a decisão de deixar o futebol, em 1927
Vicente González. Ponta-esquerda. 2 partidas (1921). A lenda popular, com sua consequente distorção com o passo do tempo, assinalou que quando disputou a Copa América de 1921, era um jovenzinho de 17 anos, e agigantava todo o feito que procedesse de uma entidade do interior do país, coisa não-usual por então. Dados mais fidedignos o dão nascido um pouco antes. Sua campanha na seleção foi de 15 dias, com dois triunfos. É um dos dois futebolistas que, pertencentes ao Gimnasia y Esgrima de Mendoza, atuaram no conjunto nacional.
Ernesto Kiessel. Goleiro. 1 partida (1920). Na única vez que lhe calhou desempenhar-se na seleção, não lhe converteram gols, o que é um dos cinco que conseguiram em toda a história em sua solitária presença internacional (o primeiro da lista). Morreu só três anos depois de ter jogado na seleção.
Julio Libonatti. Meia-direita. 15 partidas (1919-22). Foi um adiantado, porque em uma época de posições fixas, ele podia desempenhar-se em vários postos do ataque, ainda que normalmente ocupasse o de meia-direita, com a mesma eficácia e qualidade. Quem o viu jogar, sobretudo em sua Rosario natal, o colocam entre os grandes jogadores surgidos dessa escola. Era veloz, muito inteligente, certeiro para definir e possuía uma habilidade nata e muita potência. Foi o primeiro jogador argentino a ser transferido à Itália. Também ficou na história da seleção argentina, porque um gol seu ante o Uruguai, em 1921, deu à equipe alviceleste seu primeiro título na Copa América. Após dito encontro, foi levado carregado desde o campo de jogo até a Praça de Maio, no centro de Buenos Aires. (…) Até ser renovado, o campo do Newell’s Old Boys tinha uma tribuna que o recordava”.
José Alfredo López. Meio defensivo. 9 partidas (1918-21). De muita segurança em sua tarefa defensiva, se destacou – ademais – por seu senso coletivo. Isso, provavelmente, o levou, uma vez retirado como jogador, a ser dirigente e, inclusive, presidente do Boca Juniors, desde fins de 1946 até quase um ano mais tarde. Antes, já havia tido atuação na associação de ex-jogadores. Na história particular do Boca Juniors se lhe recorda por ter feito o gol do primeiro triunfo sobre o clássico adversário, o River Plate. (…) Também jogou e de maneira profissional o bilhar.
Juan Salvador Presta. Back/meio defensivo. 6 partidas (1920-23). Versátil, podia desempenhar-se em vários postos do setor defensivo. De fato, na seleção, foi back, centromédio e half. Como não tinha problemas de perfil, se acomodava em todos esses postos, mas não se firmou em nenhum.
Blas Saruppo. Centroavante. 9 partidas (1921-23). De muitas boas condições técnicas, procedia da chamada escola rosarina, mas realizou muito boa campanha no futebol de Buenos Aires.
Emilio Solari. Meio defensivo. 29 partidas (1921-26). O seu era a segurança e eficiência. Havia surgido nos juvenis do River Plate, mas foram suas atuações no Nueva Chicago as que levaram ao reconhecimento geral e, claro, à equipe nacional. Outra faceta que ressaltava era sua correção, o que provocou que nunca fosse expulso. nem sequer chamado atenção nem pelos árbitros e nem pelos dirigentes dos clubes onde se desempenhou. Na seleção, sua trajetória abarcou os grandes duelos da década de 20, onde – salvo os Jogos Olímpicos de Amsterdã – esteve em todos esses acontecimentos futebolísticos como titular indiscutido da linha média. (…) Tem o recorde de presença de jogadores do Nueva Chicago na seleção e é um dos três que pertenceram ao Sportivo Dock Sud. Cruelmente enfermo, morreu aos 31 anos.
Américo Miguel Tesorieri. Goleiro. 38 partidas (1919-25). Mérico. O primeiro que se deve dizer é que é um dos maiores goleiros que deu o futebol argentino e, talvez, até a aparição de Amadeo Carrizo, o mais importante, por suas atuações, sua personalidade, sua presença e ascendência e pelo que representou para o clube onde triunfou, o Boca Juniors. De bom físico, tinha alma da caudilho. Férreo e aguerrido. Era intuitivo e demonstrava serenidade e tranquilidade. De grande colocação e lógico, parecia adivinhar onde ia o bolão antes que o atacante arrematasse. Foi um modelo de goleiro numa etapa de evolução desse posto, que ele liderou. A Europa o admirou na famosa excursão de 1925 do Boca Juniors.
No Registro Civil Argentino há testemunho de que seu sobrenome foi anotado como Tesoriero e muitas outras publicações o dão como Tesoriere. Porém, ficou imortalizado como Tesorieri. Na seleção, alcançou uma altura que muito poucos lograram emular (…). É o jogador argentino que mais Copas América disputou: seis. As de 1920, 1921, 1922, 1923, 1924 e 1925: 19 presenças, com o qual ficou em terceiro na história. Foi, precisamente, nos torneios sul-americanos onde se consagrou.
Nos de 1921 e 1924 manteve sua vala invicta, o que era considerado uma proeza por então. (…) Em 16 de suas 38 presenças não lhe marcaram gols, o que foi recorde por espaço de quatro décadas. E entre setembro de 1920 e setembro de 1922 esteve 5 partidas não-vazado, o que foi a melhor marca na matéria pelo espaço de 77 anos… Foi capitão em 26 oportunidades (nenhum goleiro registrou tantas) e, em muitas oportunidades, exerceu como verdadeiro treinador da equipe (…) e até se encarregava de enviar telegramas para convocar seus futuros companheiros e se preocupava com que tudo funcionasse adequadamente nos lugares de reunião.
Com suas 38 partidas, possui – compartilhado com Antonio Roma – o recorde de presenças de um jogador do Boca Juniors. Sempre foi titular. Retirado do futebol, tentou alguns negócios mas não foi bem. Finalmente, o Boca Juniors – que tanto lhe devia – lhe deu trabalho no clube. Sobre o fim do ano de 1977 uma trombose cerebral acabou com sua vida. Uma faceta pouco conhecida dele é que escreveu poemas, embora nunca os publicasse”.
Um detalhe a mais sobre Tesorieri é que ele foi justamente o primeiro protagonista de capa da revista El Gráfico como um jogador de futebol, e ainda assim apenas em julho de 1922 – em tempos em que a revista ainda não se voltava primordialmente a esportes. Vamos, enfim, falar da campanha, a ressaltar outros tempos: a cordialidade entre brasileiros e argentinos era a norma. E os jogos se deram todos no estádio do Sportivo Barracas, um clube que nos anos 20 chegou a bater Milan, Napoli e Lazio em excursão de 1929, mas que atrofiou-se com a formalização do profissionalismo argentino, já em 1931. E que hoje vê o vizinho Barracas Central contar com diversas arbitragens suspeitas para o clube presidido pelo chefão Claudio Chiqui Tapia (e falta de televisionamento aberto pouco condizente com o líder da segunda divisão) para subir à elite pela primeira vez…
A CAMPANHA ARGENTINA
As primeiras edições da Copa América não continham todas as seleções da Conmebol. O quarteto Argentina, Brasil, Chile e Uruguai travavam uma disputa em pontos corridos em turno único. A novidade para 1921 foi a estreia do Paraguai na competição, embora em contrapartida os chilenos se ausentassem. Assim, a campanha campeã se limitou a três jogos – o primeiro, na tarde nublada de 2 de outubro, opôs os anfitriões contra os detentores do título, o Brasil. E para quem está tão acostumado ao lugar-comum da “catimba” a permear narrações bairristas de lado a lado, os registros da imprensa brasileira da época podem surpreender.
Tesorieri, Celli e Bearzotti; López, Dellavalle e Solari; Calomino, Libonatti, Sosa, Echeverría e Chavín foram os titulares da casa, recebendo com bandeiras brasileiras a escalação Kuntz, Telefone e Barata, Laís, Alfredinho e Dino, Zezé, Candiota, Nonô, Machado e Orlandinho. Sim: no relato do jornal carioca O Paiz, os brasileiros foram recebidos “com entusiasmo”, ao passo que os jogadores argentinos entraram em campo “levando consigo bandeirinhas brasileiras, que carinhosamente foram entregues aos dignos adversários. Os brasileiros, recebendo esta delicada manifestação de apreço e cordialidade, responderam a seus colegas argentinos com urras”. Registro fotográfico dessa diplomacia estampou o Jornal do Brasil.
Os catarinenses de O Estado foram na mesma linha ao descrever que, ao fim da partida, “os brasileiros foram largamente aclamados por longas manifestações da parte do público”. O próprio choque entre Celli e Nonô, a lesionar o atacante brasileiro ainda antes dos cinco minutos e fazer os visitantes atuarem virtualmente com dez homens (Nonô seguiu em campo, mas limitado a caminhar e tentar um o outro cabeceio) foi tratado como dividida casual, sem maldade.
O Jornal do Brasil até apontou que a despeito desse infortúnio com seu centroavante, os brasileiros chegaram a jogar melhor. Mas, aos 27 minutos, “o juiz marca um foul de Orlando; Solari bate o free kick, a bola vai direção ao goal. Kuntz sai do seu posto e vai segurar a pelota; nesse momento, o vento, que era forte, desvia a bola; ele ainda consegue apanha-la, mas cai e deixa-a escapulir das mãos e ela vai parar a um metro, onde Libonatti e impeliu para a rede, por um golpe de azar dos brasileiros, o único ponto do dia. (…) Assim que terminou o jogo, o público invadiu o campo e carregou os jogadores em triunfo, o mesmo fazendo a Kuntz. Alfredinho foi muito vitoriado e chamado de colosso. A assistência portou-se otimamente. Muitos populares felicitaram o nosso team, chegando mesmo a dizer que havia merecido a vitória”.
O Paiz também destacou como a derrota não foi vista como o fim do mundo aos brasileiros, e sim apenas um jogo: “ao terminar a partida, Kuntz foi carregado nos ombros por um conscrito e por um marinheiro, levando em suas mãos uma bandeira brasileira com que Tesorieri o obsequiara ao entrar em campo”. Mas não deixou de tratar a ausência dos paulistas com a gravidade de um assunto de Estado: “a nossa primeira esperada derrota (…) foi ontem consumada. Entretanto, o score verificado foi uma surpresa por demais agradável e salientou ainda mais o sucesso que nos estaria reservado se enviássemos ao Prata um scratch de verdade (…). É bem possível que o 1-0 com que os argentinos nos derrotaram ontem venha provocar muitos arrependimentos sinceros que produzam os seus frutos para o futuro. A São Paulo de se compenetrar, afinal, de que os insucessos que vemos sofrendo são tão deles quanto dos outros Estados. Quem perdeu foi o Brasil”.
Linha similar foi adotada pelo Correio da Manhã: “mesmo perdendo, os brasileiros, partindo de sua terra, depois de tanto contratempo, de tanto imprevisto, de tantas falhas, cumpriram regularmente o seu dever e prosseguirão do mesmo modo, com a mesma lisura, com o mesmo entusiasmo, mas, de outras vezes, procurando agasalhar-se em melhores chances”.
A partida seguinte da Copa América se deu uma semana depois, entre o candidatíssimo Uruguai e o estreante Paraguai, de quem se esperava ser goleado pelos outros países. Mas os guaranis, liderados pelos marechais Gerardo Rivas e Manuel Fleitas Solich (futuro técnico destacado no Flamengo) e treinado pelo argentino José Laguna (que, ainda como jogador, deixara as arquibancadas para marcar o gol dos hermanos no primeiro Brasil x Argentina da história da Copa América, em 1916), surpreendeu abrindo um 2-0. A Celeste só conseguiu descontar, e a sete minutos do fim.
Mas, em 12 de outubro, o Brasil aplicou um 3-0 na Albirroja. Quatro dias depois, ela, com ares de incógnita, encerraria sua participação duelando com a Argentina. Em relação aos titulares da primeira partida, Presta substituiu López; Saruppo ocupou a vaga de Sosa; e González, a de Chavín. De início, os paraguaios ofereceram resistência; foi preciso aguardar até o finzinho do primeiro tempo para a plateia explodir, na descrição do jornal O Combate: “o vento cada vez sopra mais forte, dando maior interesse ao jogo e possibilidades ao quadro argentino, que não se descuidou um só momento, cabendo a Libonatti, aos 43 minutos de jogo, escapar e pegar a pelota, que atirou certeira, marcando o primeiro ponto para a sua falange”, em lance descrito como “um fortíssimo chute”.
O Jornal do Brasil salientou que houve “um hands de Libonatti que o juiz não viu”. No início do segundo tempo, Rivas acertou a trave em lance a sós com o goleiro Tesorieri. Quem não faz, leva: O Combate narrou que “aos 26 minutos do segundo tempo, o centro argentino, Saruppo, conseguiu brilhantemente o segundo ponto argentino”, aproveitando assistência de Echeverría na sequência de falta cobrada por Calomino na entrada da área. “Mantendo-se nesta ofensiva, os argentinos cinco minutos depois de conquistarem o segundo ponto conseguiram, por intermédio de Echeverría, o terceiro tento”, após “burlar toda a defesa contrária (…). O povo invadiu o campo e ovacionando delirantemente os quadros disputantes, carregou em triunfo os jogadores que mais se destacaram”.
Uma semana depois, o Brasil se despediu encarando o Uruguai. Com oito minutos de jogo, a estrela Ángel Romano já havia marcado os dois gols do triunfo charrúa, finalizado em 2-1. O resultado embolou a pontuação e favoreceu demais os donos da casa, a quem bastaria o empate na rodada final, outra semana mais tarde. A escalação que goleara o Paraguai foi mantida, à exceção da volta de López para o lugar de Presta. O Uruguai precisava vencer para forçar um jogo-desempate. E alinhou quem soubera fazer o serviço meia década antes, quando a Celeste vencera no estádio do Racing o clássico platino válido pela rodada final da Copa América inaugural.
Manuel Beloutas, José Benincasa e Alfredo Foglino, Fausto Broncini, Alfredo Zibechi e Juan Molinari, Pascual Somma, Norberto Casanello, José Piendibene, Ángel Romano e Antonio Cámpolo foram os visitantes em 1921, mantendo do duelo de 1916 os cinco nomes negritados – com destaque a Piendibene, eleito pelos próprios argentinos nos anos 20 como o maior craque que viram, ao simbolizar a ascensão dos uruguaios no clássico, invertendo a partir do final dos anos 1900 uma freguesia até então favorável à Albiceleste. Nenhum argentino derrotado em 1916 seguia na seleção – muitos ainda jogavam, mas na liga dissidente.
A partida repercutiu até no Jornal de Recife, que a descreveu assim: “a pressão dos argentinos é formidável durante vinte minutos. Porém, a defesa uruguaia brilhou, desenvolvendo uma tática apreciável e emocionante, não dando ocasião aos argentinos de fazerem goal. Diante dessa resistência, os argentinos esmoreceram um pouco. Então os uruguaios aproveitaram e, por intermédio de Romano e Somma, equilibrou-se o jogo. Registram-se investidas repetidas dos argentinos que, por intermédio de Echeverría, conseguiram aos 28 minutos de jogo uma brilhante escapada que terminou uma extraordinária defesa de Beloutas, respondendo os uruguaios que investiram”.
O mesmo periódico prosseguiu: “Cámpolo desfechou terrível tiro que passou raspando a trave argentina. O jogo tornou então muito movimentado por ambos contendores que desenvolveram ativa energia, procurando todos os momentos fazer o goal, notando-se várias e brilhantes escapadas de Calomino e Romano, que obrigaram a defesas estupendas de Tesorieri e Beloutas, terminando o primeiro tempo às 16h10, com o empate de 0-0. O segundo tempo se iniciou às 16h25. Os argentinos saíram e investiram inutilmente. Os argentinos reatacaram. Libonatti escapou, sendo impedindo por Benincasa. A luta assumiu então grandes proporções, observando ambos os contendores grande vontade de vencer. Assim manteve-se o jogo até os 22 minutos do segundo tempo. Libonatti, recebendo ótimo passe, depois de vários dribblings, conseguiu o goal que garantiu a vitória do scratch argentino, entre delirantes ovações da multidão”.
O Jornal do Brasil também foi elogioso ao lance: “Libonatti tira magnífico partido da situação, shootando com tal maestria que a defesa é impossível, sendo marcado o único ponto do dia, por entre delirantes aclamações do público, que invade o campo, ovacionando o jogador argentino”. Como não poderia deixar de ser, a revista El Gráfico foi poética sobre “a grande sacudida, o golaço histórico, a jogada transcendental: Solari habilitou o ponta González e este, entrando um pouco até o centro, enviou a bola à meia altura. Atirou Saruppo com mais cálculo do que força, mas Beloutas alcançou a desvia-la, embora sem retê-la. E foi então que, com a torcida em suspense, crispados os punhos, dilatadas as pupilas, entrevemos a possibilidade do gol”.
Na lembrança da El Gráfico, “Beloutas havia ficado no solo e aí pertinho estava Julio Libonatti. Podia chegar antes que nenhum outro na bola. Gritamos como gritam os garotos nos filmes de terror: ‘aí, aí’, queríamos avisar a Libonatti, caso ele não houvesse se dado conta. Nos pareceu que nos havia ouvido quando, sereno, sem apuros, tocou suavemente a bola em direção à rede. Mas o fez também com tão extrema delicadeza que fomos contando centímetro a centímetro como quem conta os segundos de um knock out. Até que a redonda atravessou a linha, soou o apito, trovoaram no ar os gritos de júbilo, se alçaram os braços, voaram os chapéus… os argentinos haviam ganho o campeonato sul-americano”. Era o terceiro gol de Libonatti no torneio, o suficiente para fazer dele o primeiro argentino a terminar na artilharia da Copa América. E o terceiro gol da vitória.
Não, ainda não haviam ganho, claro. E o Jornal de Recife salientou que “recomeçada a pugna, os uruguaios passaram então a exercer forte pressão, tentando desmanchar a diferença e desde então não deu tréguas à defesa argentina. Registram-se seguidas defesas de Tesorieri e dos backs argentinos durante cerca de quinze minutos. Os orientais combateram a atividade, porém desanimaram. Então os argentinos atacaram fortemente o reduto uruguaio, mandando dois violentos shoots contra o goal uruguaio, sem resultado. Até os últimos momentos os argentinos dominaram completamente os adversários, obtendo assim justamente o título de campeão sul-americano. Terminado o jogo, o povo carregou em triunfo os vencedores e vivaram os vencidos, debaixo de entusiasmo indescritível. O referee brasileiro, Pedro Santos, atuou muito bem, sendo aplaudido pelo público”.
Por fim, o Jornal do Brasil reconheceu: “a vitória da equipe portenha foi bem merecida e constitui um justo prêmio aos grandes esforços que empregou para que o triunfo lhe sorrisse. O jogo foi bastante equilibrado e um quadro valeu perfeitamente o outro: bateram-se com denodo, vencendo justamente o que fez mais jus à vitória. Foi fator principal do brilhantismo da pugna a atuação do juiz brasileiro Pedro Santos, que se houve com toda a proficiência e fechou com chave de ouro a intervenção dos brasileiros no Campeonato Sul-Americano de Football deste ano. (…) O povo invadiu o campo e carregou em triunfo todo o team argentino, o juiz Pedro Santos e Zibechi, o capitão uruguaio. Foi um verdadeiro delírio, perfeitamente justificável diante de tão belo feito”.
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