10 anos do “Silêncio Atroz”: a queda do ‘galático’ River para o San Lorenzo na Libertadores

Entre 2010 e 2011, a saudosa revista El Gráfico publicou edições especiais em que elegia os cem maiores ídolos dos cinco grandes argentinos. No caso do San Lorenzo, ainda sem Libertadores, naturalmente valorizou-se quem participou dos bissextos títulos azulgranas, a normalmente pingarem de tempos em tempos. Quem suou por muito tempo, mesmo sem troféus em Boedo, também foi lembrado (Néstor Gorosito). Assim como não-campeões de grande desempenho ainda que por curto período, como Fernando Areán, José Luis Chilavert, Blas Giunta, ou Iván Córdoba, todos de duas a três temporadas no clube. Mas desses ninguém foi tão breve como Gonzalo Bergessio, de uma só temporada. Escolha justificada pela noite de dez anos atrás.

Era o ano do centenário do San Lorenzo. Nenhum ambiente poderia ser melhor para encerrar a falta de Libertadores. O time vinha embalado pela conquista do Clausura 2007, o primeiro título nacional desde 2001. Haviam saído o artilheiro (Gastón Fernández) e o motorzinho (a revelação Ezequiel Lavezzi), mas a base campeã foi bem reforçada para aquele ano festivo. Para o lugar de La Gata Fernández, a diretoria repatriou um antigo ídolo, exatamente o goleador do dourado ano de 2001: Bernardo Romeo, artilheiro de outra conquista daquele ano, a Copa Mercosul. Já Lavezzi teve seu posto na armação ocupado por Andrés D’Alessandro, vindo em baixa do Real Zaragoza.

Outros ex-jogadores de seleção com certo renome para o futebol doméstico a serem contratados foram o lateral Diego Placente e o meia Daniel Bilos. Bergessio também foi contratado nessa leva. Mas era justamente um reforço de menos alarde; de todos esses, seria mesmo o único a jamais jogar pela seleção – sequer passara de três jogos na liga portuguesa pelo Benfica, que adquirira um atacante razoável que, por Platense e Racing, marcava em média uma vez a cada três partidas. E aquele conjunto, a início, preocupou. Foram três derrotas nas três primeiras rodadas do Clausura 2008, duas delas seguidas em casa: 2-0 para o Newell’s e 1-0 para o San Martín de San Juan foram os reveses no Nuevo Gasómetro. O resultado seguinte foi justamente uma derrota de 2-0 para o River no Monumental, ainda em 22 de fevereiro.

A escalação vitoriosa titular naquele dia foi quase que rigorosamente reutilizada naquele 8 de maio de 2008: Juan Pablo Carrizo, Paulo Ferrari, Gustavo Cabral, Eduardo Tuzzio e Cristian Villagra; Augusto Fernández, Oscar Ahumada, Matías Abelairas e Diego Buonanotte; Radamel Falcao e Loco Abreu. A única alteração foi que há dez anos, em um 4-3-3 ao invés do 4-4-2, o Millo começou com o ídolo Ariel Ortega no lugar da revelação Buonanotte. Aquele River havia acabado de contratar Diego Simeone e dentre suas opções ofensivas havia ainda um jovem Alexis Sánchez, que era banco. Simeone, ainda iniciante na carreira de treinador, estava credenciado como o comandante do Estudiantes que em 2006 encerrara jejum de 23 anos na elite, em grande reviravolta contra o Boca.

Bergessio comemorando com Silvera os dois gols – no segundo, sem camisa, também com Mensenguez

Afinal, com um Daniel Passarella ídolo mas já muito defasado como treinador, o River vinha de vexames em 2007: no primeiro semestre, caiu na fase de grupos da Libertadores; no segundo, além de ficar em 14º no Apertura, fora eliminado em casa pelo nanico Arsenal nas semifinais da Sul-Americana, logo após ter protagonizado sensacional classificação contra um Botafogo de belo futebol. Sob Simeone, a reação foi imediata: o River, sem títulos desde 2004 (uma enormidade para quem desde 1990 nunca vinha passando dois anos seguidos sem taça), só foi conhecer sua primeira derrota no Clausura já na 11ª rodada, em abril.

Na Libertadores, embora começasse perdendo na rodada inicial (2-0 para a Universidad San Martín, no Peru), o time de Núñez emendou bons resultados: foram quatro vitórias nos outros cinco jogos, e, mesmo quando foi derrotado, pôde deixar com honra o Estádio Azteca: caiu por 4-3 para o América na penúltima rodada, para na seguinte devolver com juros o revés para o time peruano, surrado por 5-0 no Monumental, onde estava invicto na temporada. Só que o San Lorenzo começava a engrenar. No Clausura, as três derrotas iniciais foram seguidas por sete triunfos seguidos: 3-1 no Estudiantes, 1-0 no Racing em Avellaneda, 1-0 no “quase clássico” com o Vélez (em jogo iniciado em 15 de março e só finalizado em 23 de abril exatamente em função de incidentes na arquibancada que suspenderam a partida na data original), 1-0 no Arsenal em Sarandí, 3-1 no Lanús, 3-1 no Tigre em Victoria e 3-1 no Rosario Central.

Em paralelo, o Ciclón também engatava na Libertadores após um início ruim (derrota de 2-0 para o Caracas na Venezuela e 0-0 em casa com o Cruzeiro). Logo venceu o Real Potosí por 3-2 em virada sensacional na temida altitude boliviana, revertendo nos últimos vinte minutos o 2-0 parcial do adversário, batido na sequência por 1-0 em Buenos Aires. Os argentinos em seguida perderam em Ipatinga para o Cruzeiro, mas na rodada final tinha a tranquilidade de decidir em casa a vaga no confronto direto com a camisa leve do Caracas: 3-0 construído já desde os 16 minutos, no que foi o primeiro gol de Bergessio na Libertadores. No Clausura, o atacante acumulara apenas três golzinhos.

Os encontros entre River e San Lorenzo pela Libertadores ficaram para 30 de abril, no Nuevo Gasómetro, e 8 de maio, no Monumental. Curiosamente, antes de cada partida como mandante eles enfrentaram o Boca pelo Clausura. Os azulgranas, após confirmarem no dia 24 de abril a vitória sobre o rival Vélez, embalavam em 27 de abril com o triunfo de 1-0 em casa sobre os “fregueses” auriazuis. Assim, o jogo de ida pelo continente foi quase que como um terceiro clássico seguido. A confiança cuerva era outra em relação à partida de fevereiro, assim como a escalação. O técnico Ramón Díaz, ele próprio ícone do vitorioso River dos anos 90, havia alterado meio time do Sanloré em relação aos titulares derrotados três meses antes. Naquela ocasião, El Pelado havia escalado Agustín Orión, Cristian Tula, Gastón Aguirre, Jonathan Bottinelli e Diego Placente; Juan Carlos Menseguez, Juan Manuel Torres e Santiago Hirsig; Andrés D’Alessandro, Andrés Silvera e Gonzalo Bergessio.

A desolação em Alexis Sánchez, Simeone e o resto do River

Para a Libertadores, Tula, Bottinelli, Menseguez e Hirsig deram lugar respectivamente a Hernán González, Sebastián Méndez, Cristian Rivero e Walter Acevedo. O 4-3-3 virara 4-4-2, com D’Alessandro recuando ao meio. Simeone, por sua vez, repetiu dez nomes do time que vencera bem em fevereiro, com Rodrigo Archubi no lugar de Ortega. O Nuevo Gasómetro viu um confronto equilibrado; aos 27 minutos, Silvera aproveitou cruzamento de González para abrir o placar, empatado três minutos mais tarde em cabeceio de Falcao na bola levantada por Ferrari. No finzinho, um tiro de Placente acertou a trave. O segundo tempo teve chances menos claras. Simeone viu-se confiante em arriscar, substituindo Abreu por Ortega e o volante Augusto Fernández por outro atacante: Alexis Sánchez. Escolha infeliz: uma mão do chileno ensejou um pênalti para os donos da casa a dois minutos do fim, convertido por González.

Antes do jogo da volta, os adversários tiveram compromissos no Clausura em 4 de maio. E o San Lorenzo emendou nova vitória, um 2-1 em La Plata usando um time misto contra o Gimnasia. Já o River, que não perdia havia três anos o Superclásico (inversamente aos anos 90, agora era o Boca quem vinha conquistando tudo mas sem conseguir vencer o dérbi), terminou derrotado pelo Boca por 1-0 em La Bombonera. No dia 8 no Monumental, os visitantes escalaram quase a mesma equipe que havia batido os donos da casa na semana anterior; a única diferença foi Bottinelli no lugar de Aguirre no onze inicial. No River, somente uma alteração também, com a revelação Buonanotte começando ao invés de Archubi.

Após minutos iniciais sabendo segurar o ímpeto da casa, os cuervos não restiram a Abreu (por sinal, um dos numerosos vira-casacas daquela noite: ele e o colega Tuzzio eram ídolos dos azulgranas campeões de 2001, enquanto inversamente D’Alessandro, Placente e o treinador Ramón Díaz eram os ícones millonarios que agora defendiam Boedo). O gol do Loco foi invalidado por impedimento, em equívoco do apito de Sergio Pezzotta (um árbitro trágico no River: apitaria o jogo do rebaixamento, em 2011, em que deixou de dar um pênalti ao Millo). Mas em dois minutos a justiça foi feita: a cobrança de falta de Abelairas passou por todos e entrou nas redes, após Orión ser atrapalhado pela presença de Falcao, que não chegou a encostar. O resultado classificava La Banda Roja e gerou nervosismo indisfarçável ao menos em Rivero: aos 14, recebeu um primeiro cartão amarelo e aos 41, o segundo.

Veio o segundo tempo e o River prensou o San Lorenzo na corda, sem dar espaço aos dez visitantes. Cuja missão ficou mais complicada aos 16, em pênalti infantil de Bottinelli: sem disputa de bola, acotovelou Falcao em retaliação a chapéu que o colombiano lhe aplicara instantes antes, em jogada na qual o defensor conseguira se recuperar e afastar a chance de gol. Além do pênalti, o lance rendeu a expulsão de Bottinelli (que não é o ex-flamenguista, irmão dele). Abreu ampliou, ainda sem sua característica cavadinha. Uma goleada contra nove parecia se desenhar no Monumental. Contra onze, o time já havia sido capaz de impor um 5-0 havia um ano e meio, na tarde marcada pelo golaço de Ortega a fazer o locutor Atilio Costa Febre se derreter em querê-lo “até o final de nossas vidas”.

Ícones do River, Ramón Díaz e D’Alessandro não contiveram a euforia. Em contraste, Loco Abreu (ao fundo de D’Ale) era um velho ídolo sanlorencista em choque

Assim, as condições normais de temperatura e pressão tornaram compreensíveis a opção de Simeone em tirar Augusto Fernández para pôr alguém mais ofensivo, Mauro Rosales. Mas em oito minutos o Monumental engasgou. Ao menos foi essa a opinião do volante Ahumada, a eternizar aquele momento como o do “silêncio atroz”, em crítica à própria torcida. Afinal, o 2-1 não significava a eliminação. Mas o espanto se justificava ante uma bela jogada coletiva de um time de nove jogadores resultar numa sambadinha de Bergessio em vibração incontida diante de arquibancada visitante. A bomba de canhota do do silêncio foi solta totalmente livre para aproveitar passe de Placente – igualmente livre na área, onde tivera tempo para dominar a bola recuada por Silvera.

Silvera fora essencial: na pura raça, buscara em antecipação à defesa millonaria a bola para aproveitar o cruzamento rasteiro fraco e prensado de González, habilitado no momento certo por de D’Alessandro. Simeone logo teve uma reação que soa estranha para seus padrões atuais: com mais vinte minutos contra nove e sem prorrogação, anunciou que colocaria Alexis Sánchez no lugar do lateral Villagra. Havia uma bola parada para o San Lorenzo. Mas dessa vez a tragédia ocorreu ainda antes que o chileno fosse autorizado a entrar. O lance foi cobrado e inicialmente foi rechaçado pelo River, mas os oito jogadores de linha visitantes foram capazes de manter a bola na ofensiva. Na sequência, D’Alessandro, em bela acrobacia com a canhota, a ergueu para de costas habilitar Aguirre pela ponta esquerda.

Tuzzio, que colou em Aguirre, não teve calma para dominar a bola: seu cabeceio a mandou para escanteio. Em cobrança imediata, D’Ale até cruzou baixo. Mas o iluminado Bergessio se curvou para pôr a cabeça no lugar certo (mais crueldade: se antecipando a Villagra, exatamente quem Simeone buscava substituir…) e desviar traiçoeiramente à queima-roupa para Carrizo. A ocasião não permitiu que ele se contivesse em tirar a camisa. Sánchez enfim entrou, mas ele e Falcao precisaram vir buscar jogo, sem conseguir chegar com perigo para concluir contra Orión. Desorganizado e já nocauteado, precisando marcar dois gols por conta do critério dos gols fora de casa, o River ainda teve um último suspiro, com Rosales acertando a trave aos 37 minutos. Assim, a eliminação já estava estampada quando Tuzzio deixou os mandante com dez em campo, ao ser expulso já aos 44 minutos.

O River não deixaria de ser campeão do Clausura, seu único título vencido na primeira divisão entre 2004 e 2014, mas o sincericídio de Ahumada apagaria seus sete anos de serviços ao River – precisando ir ao All Boys para demonstrar a qualidade de quem em 2012 se tornou o primeiro jogador desse clube a defender em décadas a seleção. E a euforia do San Lorenzo daria lugar à decepção diante da (futura campeã) LDU já na fase seguinte, com novo gol fora de casa do talismã Bergessio não sendo capaz de sanar falha bisonha de Orión em Quito; e a uma nova amargura no segundo semestre, com a falta definitiva de uma taça no centenário após a perda do Apertura no triangular-desempate com Boca e Tigre. A doce lembrança de 2008 ficou mesmo na noite em que o cuervo jantou gallina. Ou simplesmente “8M”, como resumido aquele 8 de maio na mitologia azulgrana.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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